RIO – Historiador e um dos líderes da Mesa de Unidade para a Ação Democrática (Muad), que reúne grupos dissidentes da ditadura cubana, Manuel Cuesta Morúa está otimista quanto ao futuro da democratização do país caribenho. Mesmo tendo críticas à nova .Constituição cubana, que diz ter sido feita “de cima para baixo”, trazendo poucas mudanças com o objetivo de evitar, ou ao menos adiar, grandes alterações no regime, ele considera o texto aprovado em referendo no fim de fevereiro um ponto de partida, inaugurando um “momento especial” na História cubana que a Muad pretende se aproveitar. Isso se os presidentes dos EUA, Donald Trump, e do Brasil, Jair Bolsonaro, não atrapalharem, bem como os rumos da crise na Venezuela, principal parceira do país no Hemisfério. Confira a seguir entrevista exclusiva que Morúa concedeu ao GLOBO em visita recente ao Brasil, onde participou de mesa-redonda para discutir a situação de Cuba promovida pelo Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri), no Rio.
Cuba aprovou recentemente uma nova Constituição e pela primeira vez em quase 60 anos tem um presidente que não é um Castro. Cuba está de fato mudando ou são apenas alterações “cosméticas” do regime?
Penso que são mudanças pequenas para não mudar no grande. São mudanças pequenas na economia, com o reconhecimento da propriedade privada e do trabalho por conta própria; nos direitos humanos, com o governo reconhecendo na Constituição os direitos humanos como base para o sistema legal, como o habeas corpus e a presunção da inocência, e outros direitos básicos, como as liberdades de manifestação, associação, reunião e expressão não mais vinculados diretamente ao modelo político do socialismo e comunismo; e nos direitos civis, com a lei reconhecendo a diversidade das formas associativas da sociedade, facilitando sua organização, e ampliando os direitos dos cidadãos à iniciativa legal e constitucional, isto é, de propor alterações das leis e da Constituição.
No caso da economia, por exemplo, quem trabalha por conta própria – os chamados cuentapropistas – paga mais impostos, enfrenta muitas complicações burocráticas e não tem os mesmos direitos que os empreendimentos do Estado ou de estrangeiros. Não podem exportar ou importar diretamente, não podem investir na ampliação de seu negócio, não podem se associar interna ou externamente para se expandir nem dispor livremente da propriedade privada. A economia ainda está fundamentalmente nas mãos do Estado.
E nos direitos humanos?
Embora não estejam mais vinculados ao modelo político, abrindo a possibilidade de os cidadãos entrarem em conflito com o Estado e fazendo da dissenção um direito básico protegido pela Constituição, a repressão continua. Não há respeito aos cidadãos que decidem expressar diretamente suas preferências políticas e o governo impede a reunião de grupos ativistas que pedem mudanças democráticas. Com isso, o número de presos políticos em Cuba vem aumentando nos últimos meses. Hoje temos 133 presos políticos em Cuba.
Mas a nova Constituição e suas pequenas mudanças não podem ser um prenúncio ou a chave para alterações mais profundas no regime mais à frente?
Sim, tivemos outras mudanças interessantes, como o direito a acompanhamento de um advogado desde a prisão, o que ajuda a reduzir o abuso de autoridade e a arbitrariedade da polícia. Outra coisa fundamental é que mesmo a nova Constituição tendo sido feita de cima para baixo, todo processo serviu ao propósito não previsto de aumentar a cultura legal e constitucional dos cidadãos cubanos. As pessoas estão percebendo que a narrativa constitucional não justifica o comportamento repressivo do Estado. Então agora o governo tem um problema tanto com a Constituição quanto com a sociedade. Isso faz deste um momento muito especial e importante para a História de Cub
E como a Mesa de Unidade para a Ação Democrática (Muad, que reúne grupos dissidentes cubanos), da qual o senhor é um dos líderes, pretende se aproveitar deste “momento especial”?
Estamos impulsionando uma iniciativa que visa aprofundar estas mudanças. É a “Proposta 2020”, em que queremos transformar a lei eleitoral e reformar a Constituição cubana desde baixo, pois esta foi feita de cima para baixo. Primeiro, queremos que os cidadãos cubanos possam apresentar candidatos e eleger diretamente o presidente da República, que hoje é designado pelo Partido Comunista. Também queremos a convocação de um plebiscito para que os cidadãos cubanos decidam se Cuba deve continuar com um partido único ou ter um sistema pluripartidário. Na economia, queremos que o setor privado tenha direito de investir, importar, exportar e se associar diretamente com o capital estrangeiro. Isso porque, se a Constituição reconhece a propriedade privada e o princípio de que todos são iguais perante a lei, o investidor privado cubano deve ter os mesmos direitos que o estatal ou o estrangeiro.
Como vocês estão fazendo isso, já que a repressão continua, e o que esperam ter alcançado em 2020?
Estamos falando da proposta dentro e fora de Cuba. Em Cuba, temos redes de ativistas que estão se organizando em todas plataformas possíveis. Mas embora haja mais acesso à informação, muitos poucos cubanos têm acesso à internet, cerca de 1 milhão ou 10% da população. Assim, estamos usando a “velha tecnologia” de bater de porta em porta e conversar com as pessoas, e também conversar nas ruas. A ideia é que em 2020 já tenhamos apoio significativo o bastante para que o governo seja obrigado a fazer mais mudanças. No caso da reforma da lei eleitoral, precisamos recolher 10 mil assinaturas, e mesmo com todas dificuldades estamos no caminho disso. Já para mexer na Constituição precisamos de 50 mil assinaturas, e aí vai ser um pouco mais difícil.
E de onde vocês esperam que venha este apoio a estas mudanças, já que a nova Constituição foi aprovada em votação por 87% dos cubanos?
Estes são números manipulados pelo governo, que deu apenas a percentagem de votos válidos, não contando as abstenções, que tradicionalmente têm sido uma forma de os cubanos demonstrarem dissenso nas eleições. A verdade é que, se contarmos as 1,2 milhão de abstenções e os mais de 800 mil votos pelo “não”, brancos e nulos, agora pela primeira vez em 60 anos mais de 2 milhões de cubanos, ou 25% dos eleitores, mandaram um sinal de que querem mudanças no regime. Este é o dado chave. Cuba se move lentamente, mas está se movendo, mesmo com o Partido Comunista controlando todas as instituições fundamentais do país.
Tendo em vista estes números então, conseguir as 50 mil assinaturas para as mudanças constitucionais não me parece tão difícil…
Aí é preciso levar em conta que não temos uma sociedade totalmente livre em Cuba. Há medo, há perseguição, há repressão. No referendo da Constituição o voto foi secreto. Mas nas assinaturas pelas mudanças as pessoas têm que se identificar, e esta identificação tem que ser validada. Mas também queremos aproveitar este momento especial de Cuba para fazer isso. É importante que os cidadãos deem o primeiro passo para a reforma da Constituição. Isso tem um valor simbólico de empoderar a cidadania, para que ela seja interpretada como um direito, e não uma concessão do Estado. No caso da reforma da lei eleitoral, já temos 3 mil assinaturas, e apenas começamos. Temos confiança de que vamos obter as 10 mil necessárias até setembro. Queremos mostrar às pessoas que elas podem dar documento, nome, sobrenome, ir para casa, dormir e acordar sem a polícia batendo na sua porta, que elas podem lutar pelos seus direitos políticos sem temer por sua segurança pessoal.
O ex-presidente dos EUA Barack Obama promoveu uma aproximação inédita com Cuba. Como a mudança na política americana, com a chegada ao poder de Donald Trump, abertamente contrário ao regime, está afetando o processo de democratização?
Para começar, é preciso lembrar que sem o apoio da comunidade internacional nenhuma inciativa democrática vai à frente em Cuba. Dito isso, a Muad é um movimento plural, com distintos pontos de vista. Mas, para mim, a política de aproximação de Obama ajudava mais o movimento para a democratização do que a hostilidade de Trump. Isso porque uma característica fundamental do regime cubano é vincular tudo de ruim que acontece no país à hostilidade dos EUA. Os americanos são sempre os grandes culpados de tudo, mas, com a aproximação, esta justificativa perdeu força, permitindo às pessoas verem que o conflito fundamental do país é entre o Estado e a sociedade cubanos, e não entre o Estado cubano e os Estados Unidos. Com Trump, no entanto, este discurso de que tudo é culpa dos EUA está voltando.
E quanto às mudanças políticas no Brasil, que tinha um governo simpático a Cuba nos tempos de Lula e Dilma e agora também está com um presidente abertamente hostil ao regime?
A aliança anterior de Lula e Dilma com o governo cubano, claro, não ajudava na democratização. Mas a hostilidade atual também não creio que será de muita ajuda. Não conheço muito a realidade do Brasil, mas em Cuba a luta pelos direitos das minorias, das mulheres, dos gays, e pela liberdade de expressão são partes importantes do movimento pela democratização. E Bolsonaro tem se mostrado também muito hostil a estas minorias e aos meios de comunicação. A retórica de Bolsonaro pode dar argumentos para o governo se este tipo de intolerância é o que a sociedade cubana quer para seu futuro. Assim, o melhor que Bolsonaro pode fazer pela democratização de Cuba é ficar calado, fazer silêncio, não apoiar a ditadura cubana como fizeram seus antecessores, mas também não falar demais sobre Cuba para não dar argumentos ao governo.
A crise na Venezuela, principal aliada de Cuba no Hemisfério, e uma eventual mudança de regime lá também podem ter repercussões na luta pela democratização em Cuba?
Neste caso, diferente de EUA e Brasil, uma mudança de um governo simpático para um hostil ao regime cubano pode ser que ajude. Cerca de 20% da energia de Cuba, 35 mil a 45 mil barris de petróleo diários, são fornecidos pela Venezuela. Assim, já estamos vendo como os problemas na Venezuela estão afetando Cuba, com mais apagões e com o governo tendo que gastar mais para conseguir petróleo e derivados de outros lugares. Tudo isso vai gerar mais pressão social sobre o governo para que faça reformas econômicas mais fortes. Sem maiores investimentos estrangeiros e carências de abastecimento básico o quadro tende a se complicar, o que vai obrigar o governo cubano a se mover com mais celeridade. E tem também o impacto político. A Venezuela é hoje uma defensora geopolítica e ideológica do governo cubano que vai desaparecer se houver uma mudança democrática lá, o que também vai dar mais argumentos à oposição cubana para reivindicar mais mudanças em casa.
Fonte: O Globo