BRASÍLIA — A revogação da censura imposta pelo ministro Alexandre de Moraes à revista “Crusoé” reduziu a temperatura da crise entre integrantes do Supremo Tribunal Federal ( STF ), mas a divergência acerca do inquérito aberto pelo presidente Dias Toffoli para investigar ofensas à Corte persiste. A instauração do inquérito sem a participação do Ministério Público Federal (MPF) gerou questionamentos à legalidade do ato e uma forte reação da Procuradoria-Geral da República (PGR) . Ministros do STF defendem que a questão seja levada logo ao plenário.
Esta opinião já foi defendida publicamente por pelo menos um ministro, Marco Aurélio Mello, para quem a PGR deveria recorrer contra o não arquivamento do caso. Cabe justamente a Dias Toffoli, presidente da Corte, pautar os julgamentos pelo plenário. No caso da censura à “Crusoé”, o posicionamento de uma ala da Corte, exposta pelo decano Celso de Mello, mas também com declarações de Marco Aurélio, Cármen Lúcia e Luís Roberto Barroso, fez Moraes voltar atrás e representou uma derrota de Toffoli.
Juristas ouvidos pelo GLOBO acreditam que a fissura na relação com o Ministério Público só será resolvida se o plenário do STF se unir e tomar uma decisão conjunta que pacifique a questão. À TV Globo, o ministro Luís Roberto Barroso, que discorda do presidente Dias Toffoli, indicou contrariedade ao inquérito.
— Não gosto de falar para fora o que posso falar para dentro. Não é difícil de adivinhar minha opinião.
Na sexta-feira, o ex-ministro do STF Carlos Ayres Britto foi na mesma linha.
— O Supremo saberá decidir da melhor maneira possível. O Supremo dará a última e abalizada palavra sobre o caso. Quem investiga não julga, e quem julga não investiga — disse Britto à Globonews, acrescentando que, se o Ministério Público não quiser apresentar denúncia após o inquérito, ele é inócuo. — Não se pode obrigar o MP a formular uma denúncia perante o Judiciário. Portanto, a última palavra, essa não propositura da ação, cabe ao MP. E não há o que fazer: é arquivar o processo.
Para o ex-ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Gilson Dipp, a resolução do conflito é crucial para a confiabilidade das instituições:
— Se o Supremo não tiver capacidade de resolver uma crise interna, criada por eles mesmos, não vai ter credibilidade para decidir questões constitucionais importantes para futuro do país.
Histórico de desavenças
A relação entre a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, e os ministros da Corte tem um histórico positivo nos últimos dois anos. Porém, a tensão entre a Corte e outras esferas do Ministério Público já dura quatro anos e, na última semana, chegou ao gabinete da procuradora-geral.
Em 2015, no auge da Operação, logo após a prisão do empreiteiro Marcelo Odebrecht, a Corte decidiu pelo fatiamento das ações penais que corriam em Curitiba, mantendo com a força-tarefa apenas os casos relacionados à Petrobras. Abriu-se um flanco entre as duas instituições. À época, o coordenador do grupo de procuradores do Paraná, Deltan Dallagnol, considerou a decisão uma “derrota” e declarou que a investigação sofreria perdas com a divisão.
Uma espécie de “guerra fria” se instalou até 2018, quando ganhou corpo a possibilidade de o STF revisar seu entendimento sobre a prisão em segunda instância. As divergências se amplificaram. Dallagnol chegou a afirmar que, ao revogar a prisão após segunda instância, o STF estaria “enterrando” o combate à corrupção.
Procuradores à frente da investigação no Rio de Janeiro chegaram, certa vez, a pedir que o ministro Gilmar Mendes se declarasse impedido de julgar casos relacionados ao empresário Jacob Barata — o ministro foi padrinho de casamento da filha dele. Gilmar deu decisões concedendo liberdade a Barata e chamou os integrantes do MPF de “trêfegos (ardilosos) e barulhentos” — a classificação provocou uma ironia dos procuradores, que na ocasião nomearam o grupo de WhatsApp que os reunia com a expressão.
Em meio ao histórico recente de desavenças, juristas avaliam que a crise atual só poderá ser resolvida por meio de uma ação do próprio Supremo. Para o professor Michael Mohallem, da FGV Direito Rio, a abertura do inquérito tem um erro formal, porque o regimento foi interpretado de maneira errada. Outro erro grave, diz, é desprezar o que a Constituição determina sobre liberdade de expressão:
— É um caminho cada vez mais provável, porque os ministros vão querer corrigir o rumo de que se distanciaram.
Já o presidente da OAB, Felipe Santa Cruz, ressalta que “já passou da hora de o país parar de criar crises”:
— Tensões são parte do jogo democrático, mas em um país que atravessa a mais grave recessão de sua história, deixar tais embates rotineiros e cada vez mais agudos significa dançar à beira do abismo.
Fonte: O Globo