Onda de ataques no Ceará é resultado de um acordo entre facções, que não se repete no resto do país

SÃO PAULO — A onda de ataques criminosos no Ceará que já dura mais de uma semana é resultado de um acordo entre as duas maiores facções criminosas do Brasil. A reconciliação temporária entre Primeiro Comando da Capital ( PCC ) e Comando Vermelho ( CV ) não se estende, porém, para todo o território nacional, segundo autoridades que investigam o crime organizado.

De acordo com um delegado paulista, a ordem para o armistício entre as duas facções não partiu da cúpula do PCC, presa na Penitenciária 2 de Presidente Venceslau, no interior de São Paulo. Segundo ele, lideranças locais da organização criminosa no Ceará forçaram essa aproximação, e a ordem só foi chancelada depois pelos chefes presos em São Paulo.

Comunicados apreendidos e telefonemas interceptados pelo Ministério Público do Ceará e pela Polícia Civil de São Paulo mostram que integrantes dessas organizações criminosas em outros estados brasileiros não reconhecem o acordo de paz entre as facções paulista e carioca.

Num dos comunicados, os chamados salves, um membro do PCC no Tocantins afirma que a trégua se limita ao Ceará. Em outro diálogo interceptado, um integrante da facção paulista no Mato Grosso do Sul diz que existe orientação expressa para que o acordo não se aplique fora do estado.

Ao GLOBO, o secretário da Segurança Pública do Ceará, André Costa, afirmou que a trégua entre PCC e CV foi motivada pelo rigor que o governo estadual impôs ao sistema prisional no Ceará. Segundo ele, a nomeação do novo secretário de Administração Penitenciária do estado, Luís Mauro Albuquerque, provocou a onda de ataques criminosos desde o último dia 2.

— As facções já sabiam a forma dele trabalhar, por isso houve reação. Essa crise é proporcional à relevância da ação que o estado tem feito contra o crime. Ocorre exatamente porque estamos agindo na ferida deles – disse Costa.

Especialista em gestão penitenciária e policial civil, o novo secretário de Administração Penitenciária do estado, Luís Mauro Albuquerque, é conhecido por sua atuação no auge da crise do sistema prisional brasileiro.

Então titular da Diretoria Penitenciária de Operações Especiais do Distrito Federal, o brasiliense foi nomeado em janeiro de 2017 para coordenar uma força-tarefa federal que buscava retomar o controle do presídio de Alcaçuz, no Rio Grande do Norte. Meses depois, foi alçado à secretário da Justiça e Cidadania. Durante sua gestão, deixou de separar presos por facções e implementou rigorosas rotinas de inspeção, inspiradas no sistema penitenciário federal.

Em entrevista depois da cerimônia de posse no Ceará, no primeiro dia do ano, Albuquerque prometeu extinguir os celulares nas cadeias e disse não reconhecer facções criminosas: “Quem manda é o Estado. Eu não reconheço facção. O preso é o preso, não tem diferenciação perante à lei”. Na prática, sua fala sinalizou para o fim da separação de detentos de facções rivais nas penitenciárias, prática adotada no Ceará. Há no estado cadeias do CV, do PCC e dos Guardiões do Estado, a facção local.

Transferências

Desde o dia 2, o Ceará tem sofrido uma série de atentados ordenados por facções criminosas. Comerciantes foram coagidos, veículos e prédios públicos foram queimados e uma ponte foi explodida. De acordo com o Ministério da Justiça, 406 homens e 96 viaturas da Força Nacional estão no estado para ajudar a conter a crise de violência. Um total de 215 suspeitos de envolvimento com os ataques foram presos.

Na tentativa de enfraquecer as facções criminosas, o governo pediu a transferência de presos para o sistema federal. Na madrugada de quarta, 21 detentos do Comando Vermelho foram removidos para o presídio federal de Mossoró, no Rio Grande do Norte . Outro grupo já havia sido retirado no último domingo, dia 6. O Ministério da Justiça colocou 60 vagas em unidades federais à disposição do governo cearense.

“Para nós, presos é preso, não ter cor e bandeira, não tem nada. É preso”

Segundo o secretário da Segurança Pública, André Mota, outros presos já foram transferidos de forma pontual para penitenciárias de dentro do próprio estado. Ele não soube informar o número.

— Houve casos em situações emergenciais. Para nós, presos é preso, não ter cor e bandeira, não tem nada. É preso. A separação tem de ser por regime, por grau de risco – disse Mota.

Um membro do Ministério Público do Ceará afirmou ao GLOBO que as facções determinaram que, caso cheguem presos de outras facções em cadeias até então inimigas, a ordem é para que sejam acolhidos prontamente.

— A secretaria de administração penitenciária está misturando presos, e os faccionados estão aceitando tranquilamente até os que eram inimigos. Eles dizem: ‘agora é só crime, não tem mais PCC, CV ou GDE. Agora é o crime contra o Estado’ – disse o promotor.

Pela localização privilegiada, o Ceará é estratégico para o crime organizado. Além de mais próximo da Europa e da África, tem dois portos (Pecém e Mucuripe), o que facilita a exportação da droga. O PCC saltou de 77 filiados ali, em 2015, para 2,5 mil, neste ano. Depois de São Paulo e Paraná, o Ceará é o terceiro estado com mais integrantes da facção paulista.

O PCC se uniu à organização local Guardiões do Estado para combater o CV. Para se expandir no estado, há dois anos chegou a abolir a mensalidade que cobra dos integrantes, a chamada “cebola”, algo em torno de R$ 700.

O PCC declarou guerra ao CV em junho de 2016. As duas facções, que por mais de duas décadas mantiveram uma cooperação comercial e um acordo de proteção de seus integrantes, naquele ano passaram a disputar o mercado nacional do tráfico de drogas e deram início a uma sequência de rebeliões em presídios. Desde que romperam, essa é a primeira vez que declaram trégua.

— A grande questão no Ceará não é o que está acontecendo neste momento, porque a crise passa. Mas sim o fato de que as facções, ao se unirem contra um inimigo comum, mudaram o patamar das coisas: saíram fortalecidas, com ainda mais poder – diz o analista criminal Guaracy Mingardi, membro Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Fonte: O Globo