Líder da Assembleia desafia Maduro e se diz disposto a assumir Presidência

CARACAS — A oposição venezuelana se mobilizará no próximo dia 23 de janeiro para pressionar por “um governo de transição” e a convocação de eleições presidenciais. Ao convocar a marcha nesta sexta-feira diante de mil opositores em Caracas, o presidente da Assembleia Nacional, Juan Guaidó, disse que a Constituição o legitima a assumir o poder em uma transição depois que o Legislativo, de maioria opositora desde as eleições de 2015, declarou o presidente Nicolás Maduro um “usurpador”

Guaidó, no entanto, admitiu que isso só será uma realidade se os venezuelanos saírem às ruas para apoiá-lo e os militares retirarem seu apoio a Maduro, que foi empossado na quinta-feira para um segundo mandato de seis anos não reconhecido por boa parte dos países latino-americanos, incluindo o Brasil, nem pelos Estados Unidos e pela União Europeia.

— É suficiente manter a Constituição na ditadura? Não. Deve ser o povo da Venezuela, as Forças Armadas e a comunidade internacional que nos levam a assumir — disse Guaidó.

Horas depois da fala do deputado, a Assembleia Nacional divulgou uma nota em que afirmava que Guaidó já havia assumido os poderes do Executivo, citando vários artigos constitucionais que legitimariam essa decisão. A diferença de tom entre o discurso de Guaidó e a nota da Assembleia sugeria divisões entre os oposicionistas sobre a melhor estratégia a seguir. A própria Assembleia Nacional retificou a nota depois, reproduzindo o discurso original de Guaidó.

No seu discurso, Guaidó convocou uma “grande mobilização em todos os cantos da Venezuela” em 23 de janeiro, uma data emblemática, porque naquele dia, em 1958, caiu a ditadura militar de Marcos Pérez Jiménez.

“Assuma! Tome posse”, gritaram muitos dos que compareceram a uma reunião aberta, convocada pelo Parlamento, em frente à sede do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. “Maduro, usurpador”, foi lido em cartazes.

Um setor da oposição exigia que Guaidó se tornasse presidente, alegando um “vazio de poder”. O pleito em que Maduro foi reeleito, em maio, foi boicotado pela maior parte dos partidos opositores, sob o argumento de que não havia condições para uma votação livre e limpa.

Rosibel Torres, uma advogada de 57 anos que se diz “radical”, esperava que o líder parlamentar fosse mais agressivo.

— Se ele assumir, eles dizem que o poriam na cadeia, mas Guaidó concordou em presidir a Assembleia Nacional, ele sabia quais eram os riscos — disse ela à AFP.

No entanto, Edith Rueda, uma aposentada de 77 anos, apoiou o legislador, um engenheiro industrial de 35 anos de idade. “Não podemos ficar loucos”, disse ela.

Para o cientista político Carlos Romero, “não há consenso interno sobre até que ponto podemos ignorar Maduro, a quem o alto comando militar reiterou sua lealdade após sua posse”.

— Eu não gostaria de estar no lugar de Guaidó — disse Romero à AFP. — Ele estaria esperando por um golpe militar. Ele está sendo cauteloso, mas está certo, não se pode levar o país a uma nova frustração.

Como parte de seus apelos para as Forças Armadas romperem com Maduro, Guaidó anunciou que a Assembleia aprovará uma lei de anistia para prisioneiros militares acusados de conspiração.

Mobilizações maciças exigindo a saída do poder de Maduro aconteceram em 2014 e 2017, com cerca de 200 mortos e centenas de detidos. O presidente enfrenta uma forte rejeição popular pela crise econômica, com a hiperinflação estimada em 10.000.000% pelo FMI para 2019 e escassez de alimentos básicos e medicamentos. De acordo com o Instituto Datanálisis, a popularidade de Maduro está em torno de 20%, mas a Assembleia tampouco é popular, com 26% de aprovação.

Em 2016, todas as decisões da Assembleia foram consideradas nulas e sem efeito pelo Supremo Tribunal de Justiça (TSJ), governista.

Declarado inimigo de Maduro, a quem chama de “ditador”, o secretário-geral da Organização dos Estados Americanos (OEA), Luis Almagro, considerou que Guaidó se proclamou na sexta-feira como chefe de Estado.

“Congratulamo-nos com a hipótese de @jguaido como presidente interino da #Venezuela”, escreveu ele no Twitter.

‘Golpe tuiteiro’

Logo após as manifestações organizadas pela oposição na capital, Caracas, Maduro se pronunciou, exortando a população a “manter-se mobilizada”.

— Há mentes loucas e imaturas à frente da oposição inventando de tudo — afirmou o presidente no Ministério das Relações Exteriores. — A melhor vacina contra mentes malucas é o povo mobilizado.

Segundo Maduro, as pessoas devem garantir paz, tranquilidade e, assim, serem vacinadas contra “qualquer processo de desestabilização, qualquer loucura”.

O presidente também fez menção a um “golpe tuiteiro” e classificou como um “show midiático” a reunião aberta convocada pela Assembleia Nacional.

— Digo ao povo da Venezuela: já temos muitas experiências com essas características. Este é um show para provocar a desestabilização. É o mesmo grupo que dirigiu os projetos de 2014 — afirmou, referindo-se às manifestações convocadas por parte da oposição naquele ano, pedindo sua renúncia.

Maduro se reúne com russos e chineses

Maduro, que tem entre seus aliados Rússia, China e Turquia, cumpriu nesta sexta-feira uma agenda de reuniões com delegados que participaram de sua posse, como o ministro da Defesa e Logística das Forças Armadas do Irã, Amir Hatami.

Seu governo chamou de “precedente perigoso” a resolução aprovada pela Organização dos Estados Americanos (OEA) que declarou ilegítimo seu novo mandato, e disse que o documento é produto da “coerção” dos Estados Unidos contra países do bloco. Ao divulgar o documento, o ministro das Relações Exteriores, Jorge Arreaza, considerou a decisão “ilegal e extravagante”.

Aprovada com 19 votos a favor, seis contra, oito abstenções e uma ausência, a resolução da OEA pede “novas eleições presidenciais com todas as garantias necessárias para um processo livre, justo, transparente e legítimo”.

A Venezuela agradeceu “o apoio de países amigos que decidiram não acompanhar a resolução”. Nicarágua, Bolívia e alguns países caribenhos votaram contra, e o governo do presidente mexicano, Andrés Manuel López Obrador, foi um dos que decidiram se abster, ao lado do Uruguai.

Relações frias com o Chile

O Chile não cortará as relações diplomáticas com a Venezuela, embora as mantenha em um nível muito baixo depois de não reconhecer o novo governo de Nicolás Maduro, confirmou o chanceler chileno, Roberto Ampuero.

— Não está no nosso radar romper as relações com a Venezuela — disse o ministro nesta sexta-feira na TV estatal chilena.

Desde março passado, quando o direitista Sebastián Piñera tomou posse no Chile, a posição do embaixador chileno em Caracas está vaga. Desde então, o maior representante do país na Venezuela é o encarregado de negócios e dois cônsules também se mantêm no cargo nas cidades de Caracas e Puerto Ordaz.

— As relações com esse governo são praticamente inexistentes, mas há outras instâncias que continuam a funcionar, como por exemplo, os consulados — explicou o ministro.

Atualmente, cerca de 16 mil chilenos vivem na Venezuela. Os consulados administram, ademais, o visto de “responsabilidade democrática” imposto em abril passado pelo governo de Piñera para facilitar a emigração ao Chile dos venezuelanos. Em 2017, cerca de 170 mil venezuelanos entraram no país, enquanto apenas 150 mil o fizeram até meados do ano passado.

Fonte: O Globo