Justiça de transição pode oferecer saída a regime de Maduro, diz analista venezuelano

RIO — Presidente da consultoria Datanálisis, o economista e analista político Luis Vicente Léon vê no desgaste sem tréguas de Nicolás Maduro o único caminho para a democratização do país. A pressão externa pode acelerar uma mudança, mas a chave está na oposição interna, diz. Para isso, é necessária uma liderança opositora que mobilize a população e tenha credibilidade para negociar com o regime. León sugere que uma negociação possível inclua o estabelecimento de uma Justiça de transição, de modo que Maduro e os altos funcionários do seu regime não ajam apenas para salvar a própria pele. “Sem essa saída, não há incentivo para o seu adversário e ele é um kamikaze. E um kamikaze não negocia, ele vai lutar até a morte”, afirma. León é cético em relação à possibilidade de que os militares se voltem contra Maduro: “O setor militar está completamente vigiado. Não haveria qualquer possibilidade de fazerem algo sem que Maduro e o serviço de inteligência interno estivessem inteirados, sobretudo os que têm posto de comando”.

O que a oposição deve fazer para obter êxito na democratização da Venezuela?

O êxito da oposição para mim requer dois elementos fundamentais, indispensáveis não só à Venezuela, mas para sair de qualquer governo autoritário que impede o exercício dos direitos democráticos. Isso vem da história. Primeiro, a oposição tem que conseguir elevar ao máximo o custo do status quo, isto é, o custo para o governo de fazer o que quiser, violar direitos e impedir que a maioria possa se expressar. A única maneira para parar com esse abuso de poder e essa violação de direitos é fazer com que, para Maduro, seja mais caro o preço de levá-los adiante do que o de negociar.

A oposição precisa trabalhar para elevar os custos. E esses custos se devem a uma combinação de fatores. Obviamente, a posição internacional, que tem sido da UE e dos países do Grupo de Lima, é tentar elevar os custos e dividir o grupo chavista, com sanções econômicas e financeiras, voltadas contra pessoas, e também para estrangular o governo. As sanções contra o governo em alguma medida têm o efeito contrário ao pretendido, porque também afetam o povo. Mas, de qualquer maneira, a lógica é essa — o que tentam, fundamentalmente, é elevar o custo. Mas essa é uma parte. Eu chamaria de o tempero do prato, do sal.

E qual é o ingrediente principal?

O ingrediente principal é interno. Como conseguir que a maioria que quer mudança consiga se articular, como conseguir que a ação interna, isto é, a maioria que quer mudança, tenha esperanças nessa mudança e esteja disposta a se sacrificar e ir à luta para conseguir direitos. Como conseguir que estejam dispostos a se sacrificar e a trabalhar e a lutar por seus direitos, e a se afirmar de modo tão forte que crie um perigo para o governo, que ele precise e seja obrigado a negociar. Se essa articulação não existe, não importam as ações da comunidade internacional, as chances de sucesso são muito baixas ou mesmo nulas.

O que é necessário para essa articulação?

Uma liderança que resgate a confiança — e que, hoje, não existe. Nenhum líder da oposição da Venezuela, neste momento, apesar de a população querer mudança, tem mais de 30% de aprovação. E mesmo a Assembleia Popular só tem 25% de aprovação. Então nenhum líder da oposição representa essa maioria da população que quer mudança ou gera confiança. Não conseguem mobilizar as pessoas, e, se não mobilizam as pessoas, é muito difícil ter poder de negociação com o governo e obrigá-lo a ceder. Ele só vai negociar se não tiver mais alternativa, não vai fazer isso por livre vontade, se o fizer, será porque não há outra saída. Então, é necessário construir essa pressão, que o governo não tenha outra opção.

Como facilitar essa construção?

É necessário reduzir ao mínimo o custo de saída do governo. Quer dizer, a oposição precisa estar disposta a inclusive negociar coisas que estejam fora da Constituição e da lei. É uma justiça de transição, na qual se negociam coisas que não estão na Constituição. Precisa-se estar disposto a perdoar atos que seriam sem dúvida ilegítimos e ilegais. Terá que se perdoar atos e inclusive incorporar atores que de outra maneira deveriam estar presos ou perseguidos, mas que serão perdoados, para dar viabilidade à mudança. Sem essa saída, não há incentivo para o seu adversário e ele é um kamikaze. E um kamikaze não negocia, ele vai lutar até a morte. Então, seria preciso vencê-lo, mas esta é uma força que você não vai vencer. Isso mais uma vez exige articulação.  No entanto, que líder opositor pode se apresentar perante a população que quer castigo e dizer que a solução inclui perdoar aqueles que se odeia? Por outro lado, o ódio é uma emoção, mas não gera soluções.

E como seria esse perdão?

Não me refiro a perdões indiscriminados, mas a uma negociação. Seria necessário o estabelecimento de elementos de integração do adversário, para permitir que a democracia flua e seja resgatada. Isso exige que seu adversário negocie. Porque, se a sua alternativa é destruir, eliminar e perseguir, a probabilidade é obter uma negociação que se anula. Um exemplo é o Chile e a transição da ditadura de Pinochet, onde foi preciso engolir muito sapo e Pinochet assumiu o Exército, só sendo investigado muitos anos depois. E o mesmo aconteceu na Espanha com Franco e na África do Sul. Se você não permite que a democracia flua e se dedica ao tema constitucional e legal, a possibilidade de negociação é praticamente

Como a população vê o governo?

As pessoas avaliam presidentes a partir de suas vidas — não é porque ele permitiu a instituição da democracia ou como se apresentou na eleição. As pessoas elegem presidentes em função de sua qualidade de vida, de sua situação econômica, da possibilidade de obter empregos, do impacto da inflação, do tema da infraestrutura. E o que aconteceu na Venezuela? O país viveu a época mais perversa de toda a sua época republicana. Atravessou uma hiperinflação que só houve duas vezes neste século, e que é muito difícil se resolver a curto prazo. Acabará resolvida, porque é insustentável, mas ainda vai durar todo este ano e, possivelmente, o próximo. Ainda está em pleno processo de expansão e crescimento, na verdade, vamos ter crescimento exponencial da inflação nos próximos meses, nos quais a vida vai se deteriorar e deteriorar. E como então as pessoas veem Maduro? Mal, porque sempre vão avaliar o governo a partir do impacto em suas vidas. Ele tem cerca de 20% de aprovação, o que é surpreendentemente alto, se considerada a magnitude da crise. Nessas horas, é sempre necessário lembrar do legado de Chávez, que segue sendo importante. Decerto, o chavismo genérico ou o legado de Chaves têm um  nível maior, o que significa que a maioria das pessoas que se conecta com Chávez rechaça Maduro.

E os líderes da oposição?

A avaliação da classe dirigente em geral não é muito melhor que a de Maduro, incluindo os líderes opositores mais relevantes, como Henri Falcón, Henrique Capriles, María Corina Machado e Henry Ramos. Nenhum tem mais de 30% de popularidade. Então, se Maduro tem 20%, os outros tem 25% ou 30%. Isso não significa que os índices são iguais, mas que a alternativa opositora não tem a capacidade de se conectar com as pessoas para representar o sonho ou a perspectiva de mudança. E é igual com a Assembleia Nacional e com a Assembleia Nacional Constituinte — as duas não têm praticamente nenhum nível de aprovação popular, o que é insólito, porque praticamente 80% das pessoas quer mudanças. E só 25% das pessoas aprova a Assembleia Nacional.

E os militares neste cenário? O Washington Post disse que o ministro da Defesa pediu que Maduro não assumisse.

O tema militar é muito complicado e uma caixa-preta. É realmente muito difícil saber o que se passa lá dentro. Para ser sincero, eu não sou muito inclinado a dar crédito aos jornalistas que falam intrigas  sobre o setor militar, eles falam muito mais de hipóteses do que da realidade. O setor militar está completamente vigiado. Não haveria qualquer possibilidade de fazerem algo sem que Maduro e o serviço de inteligência interno estivessem inteirados, sobretudo os que têm posto de comando. Não acho que se possa saber o que acontece lá dentro sem que os militares falem. Mas, quando falam, é porque já estão fora. Enquanto estão dentro, é muito pouco provável. É claro que há fraturas, mas também estou tecendo hipóteses.

Por que apoiam o governo?

É claro que o setor militar não é formado por marcianos, que eles fazem parte da mesma estrutura social. Estão com Maduro porque participam do governo, têm poder, recursos, fazem negócios e obtêm vantagens. Mas é claro que deve haver diferenças, ataques, descontentamentos, noções do desastre que vive o país e, também, temores. Porque os chavistas civis e militares dividem-se entre os que já estão sob sanções internacionais e os que serão sancionados. Então, embora tenham muito dinheiro e poder, precisam pensar no futuro. Isso significa que seus recursos serão restringidos, exceto dentro do país, e que podem ser presos a qualquer momento. Isso pode gerar pressões de implosão e é possível que apareçam atores dispostos a negociar com opositores que queiram mudanças. Então Maduro tem um risco em seu aliado maior. Por isso o mantém à rédea curta, para evitar que recaia sobre si.

Há algum grupo que pareça mais preparado para liderar a oposição?

Não me atreveria a responder que setores estão mais prontos para conduzir a oposição, porque ela está completamente polarizada, dividida, sem lideranças, sem planos e com visões completamente distintas sobre não apenas como enfrentar Maduro, mas também de como conduzir o país no futuro.  Há, primeiro, a primeira grande divisão, entre radicais e moderados. Os radicais pensam que a única via para mudar o país é a luta armada ou uma invasão estrangeira, enquanto os moderados sentem que é preciso articular, trabalhar, gerar pressão, protestos e ingovernabilidade para que possa haver mudanças. Depois, há diferenças entre opositores que estão dentro e que estão fora do país. Os opositores externos sentem que a única maneira para poderem ser atores no futuro é influenciar desde o exterior, então buscam apoio estrangeiro. Eles desprezam, no entanto, a capacidade de mudança que têm os atores internos. Enquanto isso, os que estão dentro da Venezuela sentem que os que estão fora fora trabalham sem considerar o esforço e os riscos daqueles que estão no país, então não lhes dão grande confiança.

Fonte: O Globo