RIO — Além das repetidas críticas dos seus vizinhos europeus, parece que o governo da Itália terá trabalho para apagar os focos de rebeldia em várias cidades que desafiam as suas duras políticas migratórias. Num inédito efeito dominó, mais de uma dezena de prefeitos já se amotinou contra o Decreto de Segurança e Imigração aprovado em novembro pelo Parlamento, que restringe os direitos de algumas categorias de imigrantes e muda regras de reconhecimento de cidadania. Mas num país de incertezas exacerbadas nos sete meses do governo de populistas e ultranacionalistas em Roma, a vocal resistência dos prefeitos, por enquanto, mais afia os ares de tensão política do que cria santuários de fato, devido a restrições práticas e legais que poderiam levá-los a sofrerem penas judiciais.
Foi Leoluca Orlando, de Palermo, a capital e maior cidade da Sicília, que engatou o boicote. O prefeito de centro-esquerda, membro do Partido Democrático, ordenou que autoridades locais suspendessem medidas que “colocassem em risco direitos básicos dos imigrantes em situação regular”. Ou seja, instrui-os a desobedecer o decreto que impede que estrangeiros que receberam proteção humanitária — uma categoria diferente da de solicitante de asilo, e que na Itália inclui mulheres com filhos, menores de idade, vítimas de traumas e famílias — solicitem residência fixa quando expirarem os dois anos de proteção temporária que lhes são oferecidos.
Com a mudança na lei, as alternativas para essas pessoas são, ao fim deste prazo, voltarem para seus países de origem ou entrarem em situação irregular. Além disso, qualquer um que seja considerado “perigoso” pode ser expulso, enquanto o sistema que em outubro de 2018 atendia a 146 mil pessoas será reorganizado, com menos centros de acolhimento disponíveis.
Ao GLOBO, Orlando condenou veementemente o Decreto Salvini — apelidado com o nome do seu autor, o ultraconservador vice-premier e ministro do Interior, Matteo Salvini —, na saída de uma reunião com outros prefeitos para articular um recurso na Justiça a fim de suspender a aplicação da nova lei. Segundo Orlando, a lei arrisca provocar caos nos serviços públicos locais ao tirar de imigrantes o acesso formal a serviços básicos, como saúde e educação.
— Este decreto é desumano, porque reduz a proteção humanitária por razões políticas, e criminoso, uma vez que transforma migrantes legais em ilegais. Não trata dos chamados “clandestinos”, que vêm à Itália sem permissão, mas sim cria a situação de ilegalidade para os que já estão aqui. — diz o prefeito.— A lei mira, sobretudo, o acesso ao registro civil, retirando-o de pessoas que já o tinham ou que estão na Itália legitimamente . Sem isso, não se pode ter um contrato de trabalho e, com o fechamento dos centros de acolhimento, o resultado é que teremos de 90 a 120 mil pessoas pelas ruas. Isso inclui, por exemplo, jovens que tenham chegado aqui sozinhos há, digamos, cinco anos ou sete anos. Eles estudaram nas nossas escolas, comem à italiana, jogam futebol… ou seja, são jovens italianos. Com o fim da sua proteção humanitária aos 18 anos, em um dia se tornam clandestinos, destinados à ilegalidade.
Ao siciliano, se seguiram diversas outras prefeituras, incluindo Florença, Turim, Parma, Bologna, Reggio Calabria, Cerveteri, Bari e Pescara.
A irritação de Salvini
A argumentação é compartilhada por Anne Garella, chefe de missão da ONG Médicos Sem Fronteiras na Itália. Segundo ela, a aplicação do decreto agravará, a longo prazo, diversos problemas que já existem hoje na gestão migratória. Entre eles, destaca os assentamentos informais, a falta de acesso a serviços e a exploração laboral, sobretudo em campos agrícolas, onde trabalhadores sazonais são submetidos a precárias condições de trabalho.
Segundo a imprensa italiana, houve até dúvidas entre membros do Movimento Cinco Estrelas (M5S), o partido aliado à Liga, de Salvini, na coalizão de governo, sobre seguir ou não o decreto, antes de o chefe do partido e também vice-premier, Luigi Di Maio, determinar que a legenda aplicasse a lei. Dissidentes do M5S como Federico Pizzarotti, prefeito de Parma, e o senador Matteo Mantero saíram na linha de frente da oposição às diretrizes, evidenciando o mal estar entre os antissistema.
— Os prefeitos têm a liberdade e a responsabilidade de agir de acordo com os seus deveres — diz Orlando.— Este é um decreto, na verdade, que cria insegurança, porque em uma democracia a segurança se obtém com a garantia dos direitos de todos. São as ditaduras que dizem que a segurança está acima dos direitos.
Salvini rapidamente deixou clara sua irritação. Nas redes sociais, publicou um vídeo no início do ano com um recado aos prefeitos: “Querem desobedecer? Desobedeçam. Não mando o Exército. Mas terão que responder legalmente por isso”.
Batalha nos tribunais
Para o cientista político Raffaele Di Muccio, da Universidade LUISS em Roma, parece provável que o atual governo busque medidas judiciais para manter sob controle os rebeldes. Que o diga Domenico Lucano, o prefeito da pequena Riace, na Calábria, sob prisão domiciliar desde outubro passado. Conhecido pelas suas políticas acolhedoras a refugiados, em vigor por mais de dez anos, ele foi acusado de “criar sistemas” para contornar as regras de entrada de imigrantes na Itália. O processo da Procuradoria local foi, à época, publicamente celebrado por Salvini.
Di Mucci ressalta que os levantes coordenados não têm precedentes na Itália. O movimento de prefeitos surgiu nos anos 1990 e, até agora, mantinha atuação tímida, ainda mais para temas que, como explica, competem ao Estado, como as políticas migratórias. Entretanto, é desafiador o caminho agora para as autoridades locais, que estão na base de um sistema político e legal que prevê muitas camadas intermediárias entre os níveis municipal e nacional, sem contato direto entre prefeitos e Parlamento.
— Todos têm direito de contestar o conteúdo do decreto, e eu mesmo compartilho das reservas dos prefeitos sobre a sua constitucionalidade. Eles dizem que as normas vão contra o artigo da Constituição que prevê não diferenciação entre raças e religiões e também contra as regras de acolhimento do direito internacional. Mas eles não podem se recusar a aplicar uma lei do Estado e poderiam ser acusados de desobediência, sob risco de sofrerem ações penais. A única via possível seria argumentar que o decreto não é constitucional por via de um processo judicial civil ou penal — diz o cientista político.
Os constrangimentos podem ser práticos também. Nápoles, por exemplo, declarou seus portos abertos a 49 migrantes que, até a última quarta-feira, estavam à deriva no Mediterrâneo, enquanto nenhum país se dispunha a pôr fim ao seu sofrimento no mar. Entretanto, sem a cooperação da Guarda Costeira italiana, os navios de resgate rejeitados por Salvini não chegam à costa. Estas são decisões que, tradicionalmente, competem às autoridades de segurança nacional e, no atual governo, têm assumido tendência ainda maior de centralização.
— Para mim, as regiões poderiam ser livres para adotar medidas práticas, porém não é uma fácil resposta. O governo diz que este é um problema nacional, e efetivamente é. Porque os migrantes se movem dentro do país. Mais autonomia para decisões de acolhimento pode ser uma boa ideia sob condições normais; porém, poderia não ser quando são requeridas providências centrais — diz Di Muccio.
Com informações da AFP
Fonte: O Golbo