Enquanto o país bate sucessivos recordes de mortes em 24 horas causadas pelo novo coronavírus, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) tenta responsabilizar governadores e prefeitos pelos problemas decorrentes da pandemia.
Além de se negar a tomar medidas restritivas amplas, como lockdown nacional, o chefe do Executivo federal critica estratégias locais para barrar o vírus e utiliza os recursos repassados pela União aos entes federados como “escudo” para rebater críticas. A tática, seguida por políticos de seu entorno, tem irritado líderes regionais, que se articulam para reagir e refutar as acusações.
Gestores locais ouvidos pelo Estado de Minas creem que o presidente contribui para o agravamento da crise. Um dos apontamentos diz respeito ao estilo bélico, que acaba gerando crises institucionais recorrentemente. Nesta semana, 16 dos 27 governadores assinaram uma carta repudiando a disseminação de agressões e notícias falsas.
Políticos alinhados ao bolsonarismo têm tentado eximir o Palácio do Planalto de culpa quanto ao vertiginoso crescimento dos números da pandemia, citando justamente os repasses feitos pelo governo federal a estados e municípios.
No fim de fevereiro, Bolsonaro e seu ministro das Comunicações, Fábio Faria, foram às redes sociais escrever sobre os recursos bilionários transferidos aos estados. Nos números publicados pela dupla, constavam verbas destinadas às redes locais de saúde — os investimentos na área configuram obrigação constitucional. A tabela não continua visível na página de Bolsonaro no Twitter, mas ainda está na conta de Faria.
A tática baseada na “muleta” proporcionada pelos recursos garantidos pela Constituição é disseminada pela família presidencial. Um dos filhos, Carlos Bolsonaro (PSC), vereador no Rio de Janeiro, é engajado no tema. Em fevereiro, se apoiou em dados do Tesouro nacional para perguntar o destino de “bilhões” encaminhados pelo governo federal aos estados.
Depois, chegou a afirmar que gestões estaduais utilizavam montantes destinados ao enfrentamento à pandemia para amortizar problemas de caixa. E, embora estejam amparados pela autonomia concedida pelo Supremo Tribunal Federal (STF), líderes locais ouvem Bolsonaro dizer a apoiadores, em tom explícito, que as medidas restritivas têm “matado” cidadãos.
O governador de São Paulo, João Doria (PSDB), não poupa palavras ao afirmar que Bolsonaro incentiva o negacionismo. “É uma tragédia para o Brasil, diante de uma pandemia, ter um presidente da República negacionista, que despreza a vida, que ofende a existência. Infelizmente, o Brasil é o único país do mundo que, neste momento, tem em seus governadores e prefeitos a força da defesa da vida e da existência, e um presidente da República que nega, que se afasta do seu dever moral, institucional de defender o seu povo e o seu país”.
“O presidente parece mais preocupado em buscar culpado do que assumir responsabilidades”, sentencia o também tucano Eduardo Leite, governador do Rio Grande do Sul.
Transparência e responsabilidade
Os questionamentos sobre como os governos estaduais têm utilizado os recursos repassados pela União levaram o governador de Goiás, Ronaldo Caiado (DEM), a prestar contas pela internet. Em vídeo, ele detalhou como os mais de R$ 27 bilhões destinados pelo Executivo nacional à unidade federativa em 2020 foram utilizados.
“Minha trajetória política sempre foi pautada na transparência e na responsabilidade. Surgiram muitas dúvidas sobre o que o estado recebeu do governo federal e para onde foram esses recursos, e vim mostrar para vocês como cada centavo foi destinado”, escreveu, ao detalhar o orçamento, que inclui transferências a municípios, pagamento de parcelas do auxílio emergencial e reposição de perdas econômicas oriundas da pandemia.
Para Eduardo Leite, Bolsonaro age de forma prejudicial ao país. Além das tentativas do presidente de se eximir de culpa apontando a transferência de recursos advindos da União, o governador gaúcho cita a defesa do uso de remédios sem eficácia comprovada contra a doença e a minimização de ações como o uso de máscaras.
“Ele gera confusão indo na contramão das recomendações importantes para reduzirmos a circulação do vírus, despreza os cuidados sanitários, questionou a vacina e demorou para agir em relação à compra de imunizantes, o que atrasou o processo de vacinação em massa. Além disso, insiste em dividir a população com a divulgação de fake news, como em relação aos recursos repassados pela União aos estados, defende tratamento sem comprovação científica e tem atitudes e falas que geram instabilidade institucional nos estados e no país”, diz.
Carta de protesto
Caiado, Leite e Doria são signatários de carta de protesto contra a postura de aliados de Bolsonaro. “Os estados e todos os agentes públicos precisam de paz para prosseguir seu trabalho, salvando vidas e empregos. Estimular motins policiais, divulgar fake news, agredir governadores e adversários políticos são procedimentos repugnantes, que não podem prosperar em um país livre e democrático”, lê-se em trecho do texto.
O documento foi divulgado no dia em que parlamentares bolsonaristas tentaram, sem provas, assegurar que um policial morto na Bahia, após atirar contra colegas, agiu por não concordar com medidas restritivas tomadas no estado. Adepta de primeira hora das convicções do presidente, a deputada federal Bia Kicis foi uma que tentou disseminar essa versão.
Presidente da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), a mais importante da Câmara, ela voltou atrás após receber uma enxurrada de críticas. A mesma postura adotou a deputada federal Carla Zambelli (PSL-SP), outra bolsonarista convicta.
O governador mineiro Romeu Zema (Novo) foi procurado pelo Estado de Minas para comentar a responsabilidade da União e dos estados sobre o crescimento da pandemia em solo nacional, mas não retornou os contatos.
Embora não tenha assinado o manifesto de repúdio dos governadores, a equipe de Zema emitiu nota na segunda-feira argumentando que “para o governador, a atuação direta tem mais eficácia do que assinatura de cartas”. “Embates políticos devem ficar em segundo plano, com foco na solução de problemas”, aponta outra parte da justificativa.
Vacinação lenta causa irritação
Governadores também estão descontentes com a postura de Jair Bolsonaro sobre a demora na vacinação da população. Embora tenha dito, recentemente, que sempre foi a favor de qualquer imunizante com o aval da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), o presidente colocou a chinesa CoronaVac sob suspeita em diversas ocasiões.
A injeção é produzida pelo Instituto Butantan, em São Paulo. “Precisamos de vacinas, e não de cloroquina. Lutamos para defender a vida, Bolsonaro brinca com a vida. O retardamento ao processo de vacinação no Brasil se deveu fundamentalmente à negligência, inoperância e ao negacionismo”, sustenta João Doria.
Em meio aos diversos ataques a Doria, Bolsonaro chegou a dizer, no ano passado, que o governo federal não compraria o imunizante fornecido pelo Butantan. “Ninguém vai tomar a sua vacina na marra não, ‘tá ok’? Procura outro. E eu, que sou governo, o dinheiro não é meu, é do povo, não vai comprar a vacina também não, ‘tá ok’? Procura outro para pagar a tua vacina aí”, disparou em direção ao governador durante transmissão ao vivo, em outubro.
A mais recente manifestação pública de Bolsonaro contra as medidas restritivas ocorreu na última terça-feira. Em frente ao Palácio da Alvorada, o presidente voltou a dizer, sem provas, que o lockdown mata cidadãos. Ao passar por apoiadores, ouviu críticas sobre o fechamento de atividades comerciais. “A política de fechar tudo, né, está matando o pessoal mesmo”, rebateu. “Eu não fecho nada. A vida é tão importante quanto a questão do emprego”, completou.
Fonte: Estado de Minas