Missão da DPE-AM, DPU, MPF, ACNUR e OIM esteve no município para traçar diagnóstico do cenário atual e identificou principais dificuldades de estrangeiros para entrar e se regularizar no país e a falta de estrutura de órgãos públicos para atender à crescente demanda migratória
A presença de estrangeiros solicitando regularização migratória para residência no Brasil tem crescido consideravelmente nos últimos meses, no município amazonense de São Gabriel da Cachoeira, a 852 quilômetros de Manaus. A chegada constante de estrangeiros no território brasileiro, principalmente venezuelanos, que entram por meio de trilhas alternativas e via fluvial, na tríplice fronteira (Brasil, Venezuela e Colômbia), na Cabeça do Cachorro, tem demandado cada vez mais serviços públicos do município, Estado e União, e gerado dificuldades para os próprios migrantes e instituições públicas que, atualmente, não dispõem de estrutura adequada para atender o fluxo na cidade.
Para levantar informações sobre a situação dos refugiados e migrantes na região, traçar um diagnóstico do cenário atual e ouvir a comunidade, bem como o Poder Público, uma ação conjunta foi realizada esta semana em São Gabriel da Cachoeira, a fim de verificar de que forma as instituições envolvidas podem atuar para mitigar dificuldades e propor alternativas para evitar que a situação se agrave. A iniciativa da missão é da Defensoria Pública do Estado do Amazonas (DPE-AM), por meio do Polo Alto Rio Negro, e contou com a participação de representantes da Defensoria Pública da União (DPU), Ministério Público Federal (MPF), bem como do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), Organização Internacional para as Migrações (OIM) da Organização das Nações Unidas (ONU) e Pastoral do Migrante.
A missão foi realizada de 29 de novembro a 3 de dezembro com extensa agenda de visitas e reuniões com autoridades e população migrante. As incursões ocorreram na sede do município e comunidades rurais e indígenas que acolherem estrangeiros que necessitam de apoio para se regularizar no país, bem como acesso a serviços públicos básicos, tais como saúde e educação.
Na sede do município as instituições reuniram aproximadamente 230 migrantes para ouvir suas condições e necessidades. Os migrantes puderam usar o microfone e apresentar seus pleitos. Na zona rural, se reuniram com migrantes indígenas nas comunidades Boa Esperança e Santo Antônio, nos quilômetros 7 e 15, da rodovia federal 307, respectivamente. Os membros da missão fizeram esclarecimentos dentro de suas competências legais, falaram de direitos, legislação e os caminhos que os migrantes devem seguir para acessar serviços públicos já garantidos por normas brasileiras para estrangeiros.
As instituições identificaram que a maioria dos migrantes que chegam ao município são venezuelanos, alguns sem documentação que possa identificá-los ou comprovar o vínculo e parentesco para possibilitar a regularização da situação migratória no Brasil.
Isso tem gerado dificuldades de acesso a serviços públicos na cidade, os quais devem ser garantidos tanto a brasileiros quanto a estrangeiros. Segundo os relatos ouvidos pela equipe, muitas crianças e adolescentes, por não terem documentos brasileiros, estão sem ter acesso a escolas e ao Sistema Público de Saúde (SUS). Os que conseguem assistir aulas nas escolas, após pais sensibilizarem profissionais da educação, o fazem na condição de ouvintes, mas sem matrícula que oficialize ou os vincule à rede de ensino.
De acordo com a coordenadora do Polo Alto Rio Negro, defensora pública Isabela Sales, as demandas da população migrante originaram uma situação atípica que ultrapassa as competências institucionais da Defensoria Pública do Amazonas. Por este motivo, a alternativa mais efetiva no momento para garantir os direitos dessa população, segundo observa, foi convidar para o município os representantes das instituições que podem provocar mudanças para que vejam a realidade local e de que forma podem colaborar. “Estamos à disposição para atender qualquer pessoa que nos procure no Polo da Defensoria, mas temos limites estruturais de áreas que ultrapassam nossa competência e nas quais precisamos do apoio dos órgãos que aceitaram o desafio de conhecer a realidade de São Gabriel da Cachoeira para que possamos encontrar caminhos para ajudar a população migrante que necessita de acolhimento, saúde, educação e quer se regularizar no país”, destacou.
Barreira no idioma
Na esfera judicial, um problema recorrente é a falta de um intérprete de espanhol para acompanhar os atos judiciais que acontecem no Fórum de Justiça no município. O juiz da Comarca, Manoel Átila Autran Nunes, externou às instituições a necessidade de um intérprete de língua espanhola para acompanhar audiências e atos judiciais. Na ocasião foi destacado que, devido à realidade local, o município chegou a adotar o espanhol como segunda língua de ensino nas escolas, em substituição ao inglês, idioma vigente na grade curricular de educação no Amazonas. Contudo, as alterações na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional obrigaram o retorno do ensino do inglês.
Espelho
A realidade migratória de São Gabriel da Cachoeira acende alerta porque as entradas oficiais de estrangeiros no Brasil, estabelecidas pelo Governo Federal, são os postos de Pacaraima, em Roraima, e Tabatinga, no Amazonas. Contudo, os migrantes fizeram de São Gabriel da Cachoeira um terceiro posto não oficial de ingresso no Brasil que “está em seu início”, conforme citado nas reuniões, e se não tiver a atenção necessária do governo pode crescer ainda mais.
No cenário de trabalho informal, venezuelanos ouvidos pela missão denunciaram que, sem a regularização migratória, se submeteram a acordos verbais para trabalhar em atividades nas quais “são explorados” com remunerações incompatíveis e condições humilhantes por serem estrangeiros.
“Sou venezuelana, indígena e mãe de três filhos. Trabalho de domingo a domingo para ganhar R$ 300 num acordo verbal sem garantias. Somos explorados e tratados com ignorância porque somos estrangeiros e porque precisamos. Se não aceitarmos, não temos como sustentar nossas famílias e quem nos dá serviço sabe disso e também que não é uma relação justa”, disse a migrante Carina Almar.
Atendimento
Para atender à crescente demanda de migrantes no município só há um agente da Polícia Federal. O Posto Avançado de São Gabriel da Cachoeira atua também no atendimento de crimes transfronteiriços que envolvem, por exemplo, tráfico de drogas, contrabando de ouro, crimes ambientais, entre outros. O posto não foi concebido para a regularização migratória, mas como surgiu a demanda, outro agente foi enviado temporariamente para atender os pedidos de residência e refúgio.
O trabalho é recente. Foi iniciado no dia 9 de agosto de 2021 e até este mês, registrou mais de 500 atendimentos. Com a suspensão, porém, o serviço ficará indisponível ao menos até janeiro de 2022, sem garantia que retorne ao posto, uma vez que a continuidade depende do entendimento e autorização da Superintendência da PF no Amazonas, conforme informaram os agentes aos membros da missão.
Encaminhamentos
Como resultado da missão, as instituições expediram recomendações conjuntas com uma série de medidas a serem adotadas pelo município. Entre elas, o atendimento de adultos e crianças sem documentação em unidades de saúde, e autorização para acesso de crianças à rede de educação, em cumprimento da Resolução nº 1, de 13 de novembro de 2020, do Conselho Nacional de Educação, que garante o direito de matrícula de crianças e adolescentes migrantes, refugiados, apátridas e solicitantes de refúgio no sistema público de ensino brasileiro, entre outros pontos.
A missão contou com a participação da procuradora regional dos Direitos do Cidadão do MPF, Michèle Corbi, do defensor público federal, Ronaldo Neto, das defensoras públicas do Amazonas, Isabela Sales e Danielle Mascarenhas, da coordenadora do escritório da OIM – Manaus, Jaqueline Ferreira, e da assistente de projetos Dina Carmona, e da representante do escritório do ACNUR em Manaus, Catalina Sampaio, além da representante da Pastoral do Migrante do Amazonas, Dessana de Oliveira.
Texto: Florêncio Mesquita
Fotos: Clóvis Miranda/DPE-AM