O Instituto Leônidas & Maria Deane (ILMD/Fiocruz Amazônia) finalizou neste final de semana o Curso de Aperfeiçoamento e Etnicidade, Sustentabilidade e Saúde Coletiva na Tríplice Fronteira da Amazônia, etapa preparatória ao Mestrado do Programa de Pós-Graduação em condições de Vida e Situações de Saúde na Amazônia (PPGVIDA), que será oferecido pela primeira vez a indígenas da região de fronteira do Alto Solimões, no município de Tabatinga, a partir do segundo semestre deste ano.
O curso preparatório foi iniciado em setembro do ano passado e contou com carga horária de 200 horas/aula, reunindo um total de 40 indígenas das etnias Tikuna e Kokama, dos municípios de Tabatinga e Benjamin Constant. A iniciativa faz parte do Programa de Ações Afirmativas do ILMD/Fiocruz Amazônia, que visa combater discriminações étnicas, raciais, religiosas e de gênero ou de casta, para promover a participação de minorias e combate a discriminações étnicas, raciais, religiosas, de gênero ou de acesso à educação, no caso à formação de sanitaristas indígenas.
“Estamos criando condições para que os indígenas possam se apropriar do método científico, numa iniciativa inédita que visa não somente contribuir com a Política de Ações Afirmativas, como também interiorizar as ações do ensino de pós-graduação do ILMD/Fiocruz Amazônia”, explica a pesquisadora em Saúde Pública do ILMD/Fiocruz Amazônia, Luiza Garnelo, coordenadora e docente do curso. Ela explica que a iniciativa sempre teve o horizonte mais longo de formar índios sanitaristas. “Para isso, estamos reunindo uma série de iniciativas isoladas para gerar um esforço conjunto mais ampliado. No limite, nosso desejo é que possamos capitanear uma iniciativa dentro da Fiocruz que sirva para a reflexão sobre a necessidade de se rever a política de ações afirmativas, para que não se limite apenas à política de ofertas de cotas, mas que tenhamos uma série de degraus que vão auxiliando esse estudante indígena aldeado ou morador de área rural no interior do Amazonas a alcançar um domínio do campo acadêmico”, salientou Garnelo.
Desde a sua criação, em 2015, o Mestrado em Saúde Coletiva do PPGVIDA do ILMD/Fiocruz Amazônia conseguiu formar apenas três indígenas do Alto Rio Negro, um quantitativo bastante limitado, de acordo com a coordenadora. Será a primeira vez que o programa oferecerá um curso de mestrado fora da sede, em Manaus, única e exclusivamente voltado para indígenas, em sua grande maioria aldeados, na modalidade sala estendida do programa, com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (Fapeam) – que concedeu 15 bolsas, mais recursos para auxílio em pesquisa aos indígenas aprovados – e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ), por meio de projeto aprovado recentemente em edital lançado pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação. A parceria também conta com o apoio da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP), da Fiocruz, Universidade Federal do Amazonas (UFAM), Universidade do Estado do Amazonas (UEA) e Universidade Federal de Roraima.
“Acabamos de aprovar projeto junto ao CNPQ, com uma visão mais ampliada do que estamos propondo, porque entendemos que a política de cotas é insuficiente, o que nós estamos fazendo é oferecer vagas para uma seleção específica e bolsas, mas no nosso entendimento precisa de muito mais do que isso. Fazem-se necessários um sistema de acolhimento, uma matriz curricular diferenciada para essas minorias e degraus que conseguimos prover no curso de atualização”, explicou Garnelo. O curso de atualização aconteceu no Núcleo de Saúde Ambiental (NESAM), em anexo do campus da UEA de Tabatinga. Os alunos, em sua maioria, tikunas da comunidade Umariaçu 2, tiveram oportunidade de conhecer aspectos diferentes do processo de formação, com ênfase em estruturação de projeto, métodos de pesquisa em bases curriculares nacionais e como se concebe o conhecimento ocidental.
O curso foi dividido em cinco unidades temáticas, sendo uma transversal relativa às competências do estudante, com uma semana de aulas por mês. Os temas das unidades foram Espaço e Saúde; Saúde, Sustentabilidade e Condições de Vida; Etnicidade, Direitos e Política Indígena; Política e Gestão em Saúde (Indígena e não-indígena), e Diálogos plurais entre saberes indígenas e saberes científicos. A diretora do ILMD/Fiocruz Amazônia, Adele Schwartz Benzaken, destaca o ineditismo e a relevância do curso no processo de valorização do conhecimento tradicional. indígena e na abertura de oportunidades para a formação de sanitaristas indígenas. “É um sonho que não se sonha só. Tão logo assumi a direção do ILMD/Fiocruz Amazônia, tomei conhecimento da iniciativa e nos empenhamos em viabilizar as parcerias necessárias para a concretização do curso e do mestrado, que se iniciará a partir do segundo semestre de 2023, com dois anos de duração. Sem o apoio fundamental de parceiros como a Fapeam, o CNPQ e as universidades, não seria possível alcançar esse objetivo”, afirmou.
Defensora da política de interiorização das ações de Ensino da Fiocruz Amazônia, Adele Benzaken destaca como contribuição nesse processo a realização de diversos cursos de especialização e Mestrado em Saúde Pública pelo ILMD/Fiocruz Amazônia em municípios do interior do Amazonas. “O Mestrado em Saúde Coletiva para indígenas é mais um importante passo nesse processo. Seria impossível vencermos as desigualdades existentes na Amazônia sem investirmos em pesquisa e ensino em todo esse vasto território. Sofremos com essas desigualdades e a realidade se torna ainda mais cruel em se tratando dos povos indígenas e ribeirinhos da região”, defende.
EXPECTATIVAS
A expectativa de ampliar os horizontes com a oportunidade do Mestrado enche de esperança os alunos do curso de aperfeiçoamento. Rockson Araújo Cruz, cacique tikuna da comunidade Umariaçu 2, define a oportunidade como um ”novo horizonte” que se abre para ele e os companheiros de turma. “É uma honra como líder da comunidade indígena Umariaçu 2 fazer parte de um curso que tem importância para o nosso povo e traz oportunidade de aperfeiçoamento para os nossos estudantes. É um caminho grande que temos pela frente, um horizonte novo que se abre e gostaria muito de agradecer a Fiocruz por abrir essa porta para os estudantes indígenas”, comemorou, destacando que a Umariaçu 2 tem aproximadamente 7 mil indígenas.
Satisfeito em participar do curso, o professor indígena Rinaldo Valência Firmino, 29, da etnia Tikuna, é outro que se diz esperançoso. Formado em Agroecologia, pela UEA, ele tem especialização em Geografia Ambiental e é pós-graduado em Pedagogia em Processo de Aprendizagem, Desenvolvimento e Alfabetização. Atualmente, atua como professor na escola indígena da comunidade, e acredita que como sanitarista indígena terá oportunidade de contribuir ainda mais para com o seu povo. “O mestrado traz oportunidade para trabalharmos como sanitaristas indígenas, contribuir com políticas públicas, entender e interferir na realidade indígena”, ressaltou.
PROCESSO
Presente ao encerramento, a pesquisadora da ENSP, Ana Lúcia Pontes, que atuou como docente no projeto, ressalta o protagonismo da Fiocruz Amazônia no processo de construção do curso de aperfeiçoamento e na oportunidade de oferecimento do Mestrado em Saúde Coletiva para indígenas. “Essa é uma discussão que vem se desenvolvendo a partir dos pesquisadores da Fiocruz Amazônia, mais o GT de Saúde Indígena da Abrasco (Associação Brasileira de Saúde Coletiva) sobre as ações afirmativas e as mudanças que a política tem proporcionado desde que foi institucionalizada. Historicamente as pautas indígenas foram colocadas por pessoas não-indígenas, o que não se justifica mais porque eles (os indígenas) têm pessoas já formadas, habilitadas, capazes e que reivindicam esse lugar de falarem por si mesmos e de estarem nos espaços de tomadas de decisões de políticas públicas”, afirma Ana Lúcia, referendando a importância do trabalho desenvolvido na região da Tríplice Fronteira no Alto Solimões.
Para ela, o curso de aperfeiçoamento é uma ferramenta para facilitar e acolher os indígenas, além de gerar um processo de qualificação para que eles assumam e estejam à frente nos diferentes âmbitos, seja na política de saúde, seja na produção acadêmica, seja nos processos de ensino. “Eles não se sentiam acolhidos e bem-vindos nessas instituições acadêmicas, como não sentem nas universidades ainda sofrem muito racismo, então vimos discutindo algumas estratégias e avaliações com as próprias ações afirmativas e algumas propostas de ampliação das ações”, relembra, citando que a Fiocruz Amazônia foi a primeira a incorporar as ações afirmativas, tendo sido a pioneira também na inclusão de cotas para indígenas.