O Projeto Amazônia: Ciência, Saúde e Solidariedade no Enfrentamento à Covid-19, desenvolvido pela Fiocruz Amazônia em parceria com a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID), deu início às oficinas de educação popular e comunicação em saúde voltadas para as populações ribeirinhas, quilombolas e migrantes da Amazônia, visando identificar fatores que impactam na baixa cobertura vacinal e levantar estratégias para divulgação da importância da imunização nos respectivos territórios por meio de iniciativas construídas de forma participativa pelas próprias comunidades. A oficina, intitulada Educação Popular e Comunicação em Saúde para Engajamento Social e Fortalecimento da Cobertura Vacinal da População Ribeirinha, Quilombola e Migrante, já aconteceu na comunidade Matupiri, território quilombola do Rio Andirá, no município de Barreirinha, no Baixo Amazonas, e na comunidade Nova Canaã, às margens da BR-174, na altura do Km 41, área rural de Manaus.
Com cerca de 350 famílias, que ocupam hoje um território ainda não legalizado, a comunidade Nova Canaã sofre com a falta de infraestrutura e conta nos dedos as conquistas obtidas ao longo dos 25 anos de existência. Uma delas, considerada pelos comunitários como a mais importante, é a Unidade Básica de Saúde (UBS) Ada Viana. “A questão da saúde é séria e as pessoas aqui precisam muito de orientação. Vocês estarem aqui hoje é uma vitória para a comunidade, temos visto as coisas acontecerem aos poucos e agradecemos muito. Na nossa UBS temos hoje alguns serviços básicos que são prestados para os comunitários como exames de pronto atendimento, primeiros socorros, exames preventivos, diagnóstico e tratamento de malária e vacinação”, afirma o presidente da comunidade, Rony Nascimento, que reside na Nova Canaã há oito anos.
Voz influente na área, Rony destaca que a UBS hoje tem um papel fundamental dentro da comunidade. “São aproximadamente 2.750 pessoas morando aqui e precisando muito desse suporte, a exemplo do que a Fiocruz traz hoje pra cá, em relação à vacinação e tantas outras questões relacionadas à saúde. e ao bem-estar das pessoas nos territórios em que elas vivem. Ainda não tínhamos visto isso por aqui. Não temos wifi e o aplicativo do wathsapp é o único meio de comunicação que usamos”, admite ele, agradecido e lembrando que muito antes da COVID-19 chegar, a comunidade já sofria com a alta incidência de malária, devido à proximidade com áreas de floresta. Nascida de um processo de ocupação, a comunidade logo se tornou área endêmica para malária, exigindo das autoridades públicas um enfrentamento rigoroso à doença.
A publicitária e mestre em Saúde Pública, Denise Amorim, uma das facilitadoras do Amazônia, Ciência e Solidariedade, explica que esse é um dos compromissos do projeto, dar voz às comunidades e levantar informações que possam ser importantes para a definição de estratégias a serem desenvolvidas em favor dos moradores da área. “O projeto visa fazer um diagnóstico das comunidades, levantar quais são os fatores de risco ou que impedem que as pessoas se mobilizem para se vacinar contra a COVID-19 e também trabalhar outras temáticas, a partir das demandas que eles levantarem, fazê-los refletir sobre a realidade em que estão inseridos”, afirmou Denise, citando como uma das referências trabalhadas a do conceito de território para além de um pedaço físico geográfico.
“Vamos pensar um pouquinho sobre cobertura vacinal e a gente vai ofertar alguns conteúdos que falam sobre a baixa cobertura e o impacto das fakenews e da desinformação. Mas foi importante sabermos, por exemplo, que a cobertura vacinal da comunidade é satisfatória”, salientou Denise, observando que cada território tem suas especificidades.
Presente à oficina, o agente de combate a endemias Gilson Braga conta que há 21 anos trabalha no enfrentamento à malária na Nova Canaã. “Temos visto no decorrer desses anos mutas doenças acontecendo na comunidade, entre elas a dengue e a COVID-19, e os esforços das autoridades de saúde em tentar dar apoio, mas a malária é de longe o pior dos problemas e combatê-la não é fácil. Em sua grande maioria, as pessoas que pegam malária não procuram fazer um bom tratamento. Buscamos ajudar, se possível levar o medicamento até eles para que possam tomar e surtir efeito. Mas infelizmente não conseguimos adesão e muitos só vão atentar para a gravidade da situação quando estão próximos do fim”, lamentou.
Apesar das dificuldades, os profissionais que atuam na UBS Ada Viana são categóricos em afirmar que a comunidade responde de modo satisfatório às campanhas de vacinação, inclusive a da COVID-19. Um dos fatores positivos é o de que a UBS leva a vacina até as localidades mais distantes. A comunidade possui aproximadamente 28 quilômetros de ramais, segundo afirma Rony Nascimento. Em alguns trechos é impossível sair de casa devido à ausência de transporte e as condições precárias da estrada de barro, principalmente quando chove. “A vacinação hoje tem acontecido sim, porque a UBS Ada Viana tem dado esse suporte, não fosse isso não sei como seria”, confirmou.
Ver as vacinas chegando às casas é uma conquista para os moradores da comunidade, entre eles o motorista aposentado Josafá Mascarenhas de Paula, 64. Só que não. Influenciado pelas notícias falsas sobre a pandemia, ele nunca aceitou se vacinar e só resolveu mudar de ideia depois de participar da oficina do projeto Amazônia Solidária. “Gosto da área rural e dos moradores. Vivo pela fé e nunca tomei vacina, mas a partir de hoje vou tomar sim. Vi que estava sendo ignorante e Deus colocou vocês hoje no meu caminho para me mostrar isso”, confessou, emocionado, lembrando que perdeu amigos e familiares por conta da COVID-19.
TÍTULO DE POSSE
Apesar de estarem numa área bem-localizada, com acesso principal no km 41 da BR 174, entre Manaus, Presidente Figueiredo e a AM10, que dá acesso a outros municípios do Amazonas, os moradores da comunidade Nova Canaã se ressentem da falta de regularização fundiária das áreas que ocupam. “O título de posse é o nosso maior sonho, porque vivemos aqui há tantos anos mas estamos na corda bamba sem saber se a qualquer momento vamos ter que sair”, explica Rony Nascimento. Segundo ele, a área pertence ao Governo Federal e se encontra sub judice. “A Suframa destinou uma para nós mas até termos a posse será um longo caminho. A área ainda é federal mas vamos continuar correndo atrás”, afirmou, complementando que a Prefeitura de Manaus tem trabalhado na urbanização da área, com iluminação, pavimentação de alguns trechos, a construção de uma escola e da UBS Ada Viana.
Edmar Pinto da Silva, comunitário da Nova Canaã, diz ter vivenciado a oficina como uma experiência positiva a mais na vida. “Para quem vive na zona rural essas ações são proveitosas, o poder popular que emana do povo requer essa integração social. Hoje nossa comunidade luta muito para que melhorias aconteçam e cada pessoa residente em suas áreas possa ter o direito de viver com dignidade e respeito, sendo reconhecido por todos e ter o pedaço de terra que cultiva no seu nome”, afirmou. Andrea Cursino Lopes, 49, mora na comunidade há 14 anos e aproveitou a oficina para falar das necessidades. “Precisamos de muitas melhorias na nossa comunidade, apesar do que já foi feito. Em relação à saúde, a gente precisa de uma ambulância, estamos lutando pelo asfaltamento da nossa comunidade, o pessoal promete e não faz nada, uma escola maior para as nossas crianças, porque nossos jovens saem daqui para ir para Manaus estudar e isso é perigoso”, enumera. A falta de segurança é outro problema que aflige os moradores. “Aqui tem muito tráfico de drogas e ficamos vulneráveis”, afirma.
CONSIDERANDO SABERES
Com um dia e meio de duração, a oficina, segundo Denise Amorim, contempla vários atores institucionais e é dividida em ciclos de cultura, que é uma metodologia própria da educação popular, que trabalha por meio de problematização, diálogos, construção compartilhada de saberes, considerando os saberes tradicionais daquelas populações em diálogo com os saberes científicos. “É fundamental que estejam os agentes de saúde, os movimentos sociais presentes no território, as associações, lideranças, enfim, o público-alvo é bastante diversificado, é bem plural, A ideia é que a gente tenha várias vozes para pensar como melhorar a cobertura vacinal naquele território a partir de problematizações”, explicou. O trabalho conta com o apoio do Conselho de Secretários Municipais de Saúde (Cosems) e Fundação para o Desenvolvimento Científico e Tecnológico em Saúde (Fiotec),
QUILOMBOLAS
O território quilombola do Rio Andirá é uma das três áreas mapeadas pela equipe da Frente 3 do Projeto Amazônia: Ciência, Saúde e Solidariedade no Enfrentamento à Covid-19. As outras são o Quilombo Lago Serpa, no município de Itacoatiara; e o Quilombo Urbano São Benedito, em Manaus. A bióloga e doutoranda em Saúde Pública pela Fiocruz, Joana Maria Borges de Freitas, que atua como facilitadora do projeto, afirma que a dificuldade de comunicação e de acesso às áreas são fatores limitantes. “No território quilombola Rio Andirá se nota uma população majoritariamente adulta entre 21 e 59 anos e o maior contingente populacional, com cinco comunidades. O quilombo urbano de Manaus apresenta o menor contingente populacional, um total de 45 pessoas e é o único a contar com serviços de saúde”, afirma.
De acordo com Joana Freitas, os remanescentes dos demais quilombos no Território do Andirá precisam se deslocar, geralmente, para a sede do município. No que diz respeito à comunicação, o porta-a-porta ainda é o mais utilizado nas comunidades rurais, sendo o Agente Comunitário de Saúde o principal responsável por levar as informações até os comunitários. Quanto às barreiras apontadas como responsáveis pelo insucesso das campanhas de vacinação, estão a falta de compreensão da importância das vacinas, por parte da população, em áreas não rurais; e a falta de vacinas nos serviços de saúde locais (dentro dos territórios das comunidades) o que faz com que as pessoas tenham que se deslocar para a sede dos municípios.
Santa Tereza do Matupiri é a sede do território quilombola do Rio Andirá. De Barreirinha até a localidade, são 40 minutos de voadeira. Em barcos de linha, esse percurso chega a durar três horas. No Matupiri, vivem em média 160 famílias. As demais comunidades que fazem parte do complexo são: Boa Fé, Itaquara, São Pedro e Trindade, todas reconhecidas oficialmente como remanescentes de quilombos, mas ainda sem titulação de posse do território. As cinco comunidades somam 558 famílias cadastradas. Outras duas comunidades ainda não reconhecidas, mas que dividem as mesmas dificuldades, são Santa Maria do Igarapé do Mato, que fica em Urucurituba, e São João do Urucurituba, em Barreirinha, ambas em regiões limítrofes.
BARREIRAS FLUVIAIS
A agente comunitária de saúde Tarcila Maria dos Santos Castro, 52, é do Quilombo de Santa Tereza do Matupiri e trabalha há 19 anos como ACS do município de Barreirinha. Segundo ela, a localização geográfica e a precariedade do transporte para o deslocamento são fatores que dificultam ainda mais o acesso aos serviços de saúde. Para vencer os desafios, Tarcila conta que é preciso ter disposição e coragem. “O período crítico da pandemia da COVID-19 foi um dos momentos mais difíceis e desafiadores para as comunidades. Fizemos barreiras no rio para impedir que as pessoas se deslocassem e o controle rígido de quem vinha para a comunidade para fazer compras no comércio. O controle era feito por embarcação e apenas uma pessoa era autorizada a entrar, usando máscaras e seguindo todos os cuidados”, relembra.
Segundo a ACS, todo esse esforço foi válido. “Recebemos ajuda que vinha de Manaus, através da Fiocruz, em álcool em gel, máscaras e EPIs, material esse que era dividido com os comunitários, que permaneciam dentro de casa na maior parte do tempo e os que precisavam se deslocar. Tivemos a ajuda do presidente da comunidade e dos professores das escolas. E felizmente, só registramos dois óbitos por COVID-19, de duas senhoras, que não queriam se vacinar por questões religiosas. Eles se contaminaram porque iam para a cidade (Barreirinha) e não usavam máscara nem álcool em gel. Lutamos muito nessa barreira”, afirma Tarcila, que durante um longo período teve o Rio Andirá como local de trabalho. “O Rio Andirá é muito grande e as comunidades ficam longe uma da outra. Não há acesso por terra, tem que ser tudo por meio do rio”, resumiu.
SOBRE OS PARCEIROS
No Brasil, a USAID, a NPI EXPAND e a SITAWI Finanças do Bem se uniram para criar uma parceria para apoiar a Resposta à COVID-19 na Amazônia. Entre 2020 e 2021, a primeira fase do projeto do NPI EXPAND Resposta à COVID-19 na Amazônia distribuiu mais de 23 mil cestas básicas e kits de higiene, capacitou mais de 500 agentes comunitários de saúde, doou mais de 1,4 milhão de máscaras feitas por costureiras locais e divulgou mensagens educativas de prevenção para mais de 875 mil pessoas na região. A Fase está promovendo maior resiliência das comunidades amazônicas através do apoio amplo a vacinação contra a COVID-19, campanhas de informação e combate à fake News, e apoiando os sistemas locais de saúde na região com equipamentos e insumos para detectar, prevenir e controlar a transmissão de Covid-19, bem como realizar o acompanhamento de casos agudos de COVID-19 e tratar as sequelas de síndrome pós-COVID-19.”