Justiça ambiental e barragens amazônicas: 5 – As barragens planejadas

Muitas das barragens oficialmente planejadas na Amazônia brasileira têm impactos evidentes. Por exemplo, a hidrelétrica de Marabá, que é considerada “em execução” pelo Programa de Aceleração do Crescimento [1], deslocaria dezenas de milhares de pessoas (com estimativas entre 10.000 e 40.000), em sua maior parte, ribeirinhos tradicionais (ver: [2]).

Alguns dos maiores impactos resultariam de barragens “não oficialmente planejadas”, estas sendo barragens que têm constado nos planos oficiais anteriores, mas que atualmente desapareceram dos planos publicamente anunciados. Uma é a hidrelétrica de Babaquara (renomeada como a represa “Altamira”, mas que é mais conhecida por seu nome original), que é uma das cinco barragens na bacia do rio Xingu que, desde anos 1970, foram planejadas para armazenar água rio acima de Belo Monte, a fim de suprir água para os 11.000 MW de capacidade instalada na sua casa de força principal (e.g., [3, 4]).

A vazão natural do rio é insuficiente durante a temporada de baixo fluxo para operar uma turbina sequer dentre as 18 turbinas na casa de força principal por três meses do ano e é suficiente para apenas algumas turbinas durante vários outros meses, com o clima atual [5]. As projeções de mudanças climáticas [6-8] e de desmatamento [9] implicam em uma redução substancial a geração de energia por Belo Monte. Mesmo sem esses impactos na futura vazão do rio Xingu, esta barragem seria financeiramente inviável sem os subsídios maciços que recebeu dos contribuintes brasileiros através do Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).

Só a oferta destes subsídios, combinados com pressões políticas, foram suficientes para induzir um consórcio de empresas a investirem na barragem [10]. BNDES financiou 80% do custo de construção com empréstimos a juros anuais de 4%, enquanto o governo federal se autofinanciou vendendo títulos a 10% de juros anuais [11]. Os fundos dos contribuintes na Europa e América do Norte também contribuíram através do Banco Mundial que concedeu “empréstimos de política de desenvolvimento” (“DPLs”) ao BNDES (ver: [12, 13]).

A inviabilidade financeira de Belo Monte sem as barragens a montante é um forte indício que, no mínimo, a represa de Babaquara/Altamira continua como parte do plano real (ver: [5]). A barragem de Belo Monte por si só desafia a lógica econômica básica (e.g., [4, 14, 15]).

Outras indicações incluem a história dos planos para o número de turbinas em Belo Monte, com metade da atual capacidade total de 11.233 MW tendo sido consideradas em 2003 [16], que seria mais compatível com a operação com a vazão não regulada do rio, mas os planos mais tarde voltaram a ter a casa de força principal com o design de 11.000 MW que originalmente havia sido planejada durante o período quando a intenção de construir as barragens a montante era publicamente admitida.

Outra indicação de que Babaquara/Altamira continua nos planos não declarados foi o anúncio em 2013 pela então presidente Dilma Rousseff de uma mudança na política para favorecer barragens com “grandes reservatórios”, ao invés de barragens a fio d’água, tais como a Belo Monte, e esta mudança de política foi confirmada pela administração presidencial de Michel Temer em 2016 [17-19]. O rio Xingu é o lugar óbvio que havia sido planejado para desenvolvimento com grandes barragens de armazenamento.

A barragem de Chacorão, no rio Tapajós, é um caso com uma semelhança forte à Babaquara/Altamira como um “elefante na sala”, ou seja, ausente dos debates oficiais. Chacorão inundaria 11.700 ha da terra indígena Munduruku. Essa barragem não aparece mais em planos oficiais para energia hidrelétrica, mas a hidrovia do Tapajós, que é planejada para transportar soja do norte do Mato Grosso aos portos com acesso ao rio Amazonas, continua a ser uma prioridade do governo, e as barcaças não passariam pelas cachoeiras de Chacorão sem a barragem [20, 21]. [22]

Notas

[1] Brasil, MP (Ministério do Planejamento). 2017. Aproveitamentos Hidrelétricos – Marabá – MA PA TO. PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), 30 de junho de 2017.

[2] Rodrigues, F.S. & Ribeiro Junior, R. 2010. Construção do AHE Marabá: Uma abordagem sobre opções de desenvolvimento e o seu planejamento. III Encontro Latino-americano de Ciências Sociais e Barragens. Belém, PA.

[3] Sevá Filho, A.O. 1990. Works on the great bend of the Xingu–A historic trauma?. p. 19-41. In: Santos, L.A.O. & de Andrade, L.M.M. (Eds.). Hydroelectric Dams on Brasil’s Xingu River and Indigenous Peoples. Cultural Survival Report 30. Cultural Survival, Cambridge, MA, E.U.A. l92 p.

[4] Fearnside, P.M. 2006. Dams in the Amazon: Belo Monte and Brazil’s Hydroelectric Development of the Xingu River Basin. Environmental Management 38(1): 16-27.

[5] Fearnside, P.M. 2017. Planned disinformation: The example of the Belo Monte Dam as a source of greenhouse gases. p. 125-142. In: L.-R. Issberner & P. Lena (Eds.). Brazil in the Anthropocene: Conflicts between Predatory Development and Environmental Policies. Routledge, New York, NY, E.U.A. 368 p.

[6] Angelo, C. & Feitosa, C. 2015. País poderá viver drama climático em 2040, indicam estudos da Presidência. Observatório do Clima, 30 de outubro de 2015.

[9] Margulis, S. & Untersell, N. 2017. Shaping up Brazil’s long-term development considering climate change impacts. p. 220-241 In: Issberner, L.-R. & Lena, P. (Eds.). Brazil in the Anthropocene: Conflicts between Predatory Development and Environmental Policies. Routledge, New York, NY, E.U.A. 368 p.

[8] Sorribas, M.V., Paiva, R.C.D., Melack, J.M., Bravo, J.M., Jones, C., Carvalho, L., Beighley, E., Forsberg, B. & Costa, M.H. 2016. Projections of climate change effects on discharge and inundation in the Amazon basin. Climatic Change 136(3): 555-570.

[9] Stickler, C.M., Coe, M.T., Costa, M.H., Nepstad, D.C., McGrath, D.G., Dias, L.C., Rodrigues, H.O. & Soares-Filho, B.S. 2013. Dependence of hydropower energy generation on forests in the Amazon Basin at local and regional scales. Proceedings of the National Academy of Science USA 110: 9601–9606.

[10] Rojas, B. & Milllikan, B.2014. El BNDES y el complejo hidroeléctrico Belo Monte. p. 33-47. In: Carillo, I.C. (ed.). Casos Paradigmáticos: De inversión del Banco Nacional de Desarrollo Económico y Social de Brasil (BNDES) en Sur América. Necesidad y oportunidad para mejorar políticas. – Derecho, Ambiente y Recursos Naturales (DAR), Lima, Peru.

[11] Leitão, M. 2010. Belo Monte’s Avatar. International Rivers, 24 de junho de 2010.

[12] BIC (Bank Information Center). 2009. World Bank environmental policy loan to BNDES: Moving money or mainstreaming environmental sustainability? IFI infobrief,Setembro de 2009, BIC, Washington, DC, E.U.A. 25 p.

[13] Fearnside, P.M. 2017. Belo Monte: Actors and arguments in the struggle over Brazil’s most controversial Amazonian dam. Die Erde 148(1): 14-26

[14] Sousa Júnior, W.C. de & Reid, J. 2010. Uncertainties in Amazon hydropower development: Risk scenarios and environmental issues around the Belo Monte dam. Water Alternatives 3(2): 249-268.

[15] Sousa Júnior, W.C. de, Reid, J. & Leitão, N.C.S. 2006. Custos e Benefícios do Complexo Hidrelétrico Belo Monte: Uma Abordagem Econômico-Ambiental. Conservation Strategy Fund (CSF), Lagoa Santa, MG. 90 p.

[16] Pinto, Lúcio Flávio. 2003. Corrigida, começa a terceira versão da usina de Belo Monte. Jornal Pessoal, 28 de novembro de 2003.

[17] Borges, A. 2013. Dilma defende usinas hidrelétricas com grandes reservatórios. Valor Econômico, 06 de junho de 2013.

[18] Borges, A. 2016. Diretor-geral da ANEEL defende retorno de hidrelétricas com grandes reservatórios. O Estado de São Paulo, 30 de setembro de 2016.

[19] Fearnside, P.M. 2017. Dams with big reservoirs: Brazil’s hydroelectric plans threaten its Paris climate commitments. The Globalist, 29 de janeiro de 2017.

[20] Brasil, MT (Ministério dos Transportes). 2010. Diretrizes da política nacional de transporte hidroviário. MT, Secretaria de Política Nacional de Transportes, Brasília, DF.

[21] Fearnside, P.M. 2015. Amazon dams and waterways: Brazil’s Tapajós Basin plans. Ambio 44(5): 426-439.

[22] As pesquisas do autor são financiadas pelo Conselho Nacional do Desenvolvimento Cientifico e Tecnológico (CNPq: proc. 304020/2010-9; 573810 / 2008-7), Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado do Amazonas (FAPEAM: proc. 708565) e Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA: PRJ15.125). Esta série é uma tradução de um capítulo do autor no prelo em Landscapes of Inequity: The Quest for Environmental Justice in the Andes/Amazon Region. Nicholas A. Robins & Barbara Fraser (Eds.), University of Nebraska Press, Lincoln, NE, E.U.A.

A fotografia que abre este artigo é do bairro Jardim Independente I, conhecido com Lagoa, atingido pela barragem do rio Xingu para a construção da hidrelétrica de Belo Monte, no Pará (Foto: Lilo Clareto)


Philip Martin Fearnside é doutor pelo Departamento de Ecologia e Biologia Evolucionária da Universidade de Michigan (EUA) e pesquisador titular do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), em Manaus (AM), onde vive desde 1978. É membro da Academia Brasileira de Ciências e também coordena o INCT (Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia) dos Serviços Ambientais da Amazônia. Recebeu o Prêmio Nobel da Paz pelo Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas (IPCC), em 2007. Tem mais de 500 publicações científicas e mais de 200 textos de divulgação de sua autoria que estão disponíveis aqui.

Fonte: Portal Amazônia Real