Depoimento: Os 40 anos da Revolução Islâmica no Irã – da teocracia à ‘normalidade’

TEERÃ – Em fevereiro de 1979, Teerã estava imersa no caos. Sofrendo de câncer, Mohammad Reza Pahlavi, o autocrata apoiado pelo Ocidente, havia se exilado em meados de janeiro, deixando para trás um frágil conselho de regência. Em 1º de fevereiro, o aiatolá Ruhollah Khomeini, o padrinho da revolução, retornou do exílio em Paris. E na versão iraniana de “Dez dias que abalaram o mundo”, as manifestações de rua se avolumaram até o colapso do governo em 11 de fevereiro.

Os iranianos dançavam nas ruas, brincando de gato e rato com soldados, enquanto atiradores de elite do governo disparavam dos telhados. Famílias se juntaram aos protestos, enquanto lojas de bebidas eram saqueadas e as pessoas beijavam as testas dos clérigos de turbante que lideravam a revolução.

Quarenta anos atrás, os iranianos se encheram de orgulho, esperança e expectativa de um futuro melhor. Sonhos de liberdade e independência dos Estados Unidos incendiaram os revolucionários. Mas uma mudança grande e rápida pode deixar feridas profundas e duradouras. Houve açoitamentos, enforcamentos, amputações e prisões em massa. Milhares de pessoas morreram e centenas de milhares deixaram o país, algumas fugindo para salvar suas vidas, para nunca mais voltar.

O que se materializou depois daqueles primeiros anos sangrentos foi verdadeiramente revolucionário: uma República Islâmica, uma teocracia construída sobre escolhas ideológicas inspiradas em grande parte por Khomeini.

Novas regras foram implementadas para proibir qualquer coisa que pudesse desencaminhar as pessoas: controles rígidos da mídia, que isolavam os iranianos das influências ocidentais; uma absoluta segregação dos sexos em lugares públicos; véus obrigatórios para as mulheres; proibição de álcool e de instrumentos musicais na televisão. Tudo zelosamente e às vezes brutalmente implementado pela polícia da moralidade e pelas forças paramilitares Basij.

Mas com o passar dos anos, quando o fervor revolucionário inicial deu lugar ao anseio da maioria das pessoas por uma existência mais normal, as regras tornaram-se negociáveis. Enquanto o sistema político é basicamente o mesmo dos primeiros anos, a sociedade mudou lentamente, às vezes quase imperceptivelmente. Essas mudanças foram enormes, e hoje o Irã está mais próximo do que a maioria das pessoas de fora geralmente entende como aquele país “normal” que os iranianos querem.

Levou tempo para as mudanças cumulativas atingirem uma massa crítica. Quando visitei o Irã como um jovem repórter, o 20º aniversário da revolução acabara de passar e o país ainda estava à altura de sua imagem revolucionária. Arranha-céus foram decorados com murais antiamericanos ou retratos dos mártires da guerra de 1980-88 com o Iraque.

O tráfego notoriamente ruidoso era composto quase inteiramente por um mar de carros brancos, localmente chamados Paykans. Em um pequeno parque, perto de onde eu eventualmente me estabeleceria, meninos e meninas se encontravam secretamente em alguns dos bancos mais escondidos, longe dos olhos curiosos de parentes, mas também da polícia da moralidade.

Naquela época, era dentro das casas das pessoas que eu via um Irã completamente diferente. Passar por uma porta da frente significava frequentemente entrar em uma realidade diferente, em que todas as regras aplicadas nas ruas desapareciam como mágica.

Ouvia histórias — faz parte da cultura do Irã contar histórias —, e explosões de risadas eram seguidas por músicas pop persas contrabandeadas de Los Angeles. Muitas vezes, a música era acompanhada por alguém tocando um tambor ou, se isso não estivesse disponível, uma panela de arroz retirada de uma prateleira da cozinha. Todos, contadores, jornalistas, médicos, enfermeiros, desfrutavam aos fins de semana de festas tecnicamente ilegais.

Os iranianos se tornaram especialistas em atuar em vários papéis. Abbas Kiarostami, o diretor premiado que morreu em 2016, usou principalmente pessoas comuns em vez de atores em seus filmes, porque os iranianos estavam tão acostumados a viver em dois mundo.

Com o passar dos anos, as mudanças começaram a escorrer das casas para as ruas, e se tornaram mais notáveis. Quando minha mulher, uma fotógrafa, decidiu há muitos anos fazer um piercing no nariz, ela foi demitida no ato. Os editores se viam como reformistas, mas ainda consideravam um anel de nariz desprezível e ocidental. Agora eles estão em toda parte. Não é incomum ver uma mulher com cabelo rosa aparecendo sob o lenço de cabeça. As mulheres agora pedalam bicicletas, o que já foi visto como impróprio. Elas podem até ser vistas andando de moto.

Enquanto a televisão estatal ainda se recusa a mostrar instrumentos musicais, há artistas de rua em Teerã. Um dia eu estava assistindo a um casal de jovens, um na bateria e outro na guitarra, quando de repente uma jovem alta apareceu com um baixo e se juntou. Às vezes, o Estado contra-atacava, fazendo algumas prisões em tentativas intermitentes de reverter as mudanças, mas nunca por muito tempo. Às vezes, parecia que simplesmente desistiam. Conexões com o mundo exterior — a internet, é claro, mas particularmente as transmissões de TV por satélite que quebraram o véu do isolamento — foram fatores críticos de mudança.

Um dia, a polícia invadiu nosso prédio e destruiu a multidão de antenas parabólicas no telhado. A única que restou era minha — como jornalista, eu tinha permissão especial para ter uma. Naquela noite, cerca de 20 vizinhas se juntaram a mim, na minha sala de estar, para assistir a sua novela favorita turca. No dia seguinte, todas as parabólicas estavam de volta.

A polícia desistiu dessa luta também. Há parabólicas demais. Os iranianos agora podem assistir a mais de 200 canais em língua persa operando a partir do exterior, mostrando tudo, desde “Keeping Up With the Kardashians” até notícias não filtradas e filmes de Hollywood.

Fonte: O Globo