Temer nomeia Raquel Dodge como procuradora-geral e sabota sucessor de Janot

O presidente da República, Michel Temer, ignorou o tradicional compromisso de nomear o candidato mais votado na eleição interna do Ministério Público Federal (MPF) e indicou Raquel Dodge como a nova procuradora-geral da República na noite desta quarta-feira. Essa foi a primeira vez desde 2003 que o presidente da República desrespeita essa tradição. Na prática, a indicação permite a Temer escolher quem pode investigá-lo depois do término do mandato do atual procurador-geral, Rodrigo Janot, em 17 de setembro. Com o anúncio da indicação, o presidente manda o recado de que Janot está já no final do seu mandato como um intento de tirar força da denúncia que o procurador-geral apresentou contra ele por corrupção passiva na última segunda-feira.

Dodge foi a segunda candidata mais votada da categoria, com 587 dos 1.108 votos de procuradores. O candidato mais votado tinha sido Nicolao Dino, que recebeu 621 votos e era considerado o sucessor de Janot. Atual procurador-geral-eleitoral, Dino defendeu a cassação do mandato do presidente no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) pelo crime de abuso de poder político e econômico na eleição presidencial de 2014, quando o peemedebista era o vice na chapa de Dilma Rousseff (PT). O presidente conseguiu se safar por 4 votos a 3.

O desrespeito à tradição ocorreu dois dias depois que Temer foi denunciado por Janot ao Supremo Tribunal Federal (STF) pelo crime de corrupção passiva. Nesta quarta-feira o ministro relator da Operação Lava Jato no STF, Edson Fachin, decidiu enviar a denuncia para a Câmara -que deverá ser autorizada por dois terços dos seus membros- sem ouvir antes ao presidente.

Alguns procuradores ficaram preocupados com o fato de Temer ter escolhido tão rápido o novo procurador-geral. Isso porque ele recebeu a lista tríplice com os três mais votados ainda nesta quarta-feira. Janot, por exemplo, esperou mais de um mês para ser nomeado por Dilma em seu primeiro mandato em 2013. Entre 15 de agosto e 17 de setembro daquele ano, a Procuradoria-Geral da República foi comandada por uma interina, a decana Helenita Acioli.

Entre alguns procuradores que investigaram políticos no Supremo Tribunal Federal durante a Lava Jato, a nomeação de Dodge é considerada “o fim” da investigação. Mas Bruno Calabrich, procurador regional da república e colaborador eventual da Lava Jato no STF, avalia que Raquel não oferece risco às investigações e que nenhum candidato, entre os três mais votados, facilitaria a vida de políticos.

“Hoje, a Lava Jato é um transatlântico. Nenhum procurador em sã consciência seria louco de poupar políticos. Se ela tomar alguma atitude que indique esse tipo de propósito, toda a liderança que ela construiu ao longo dos anos se perde. A carreira não toleraria algo do tipo”, afirmou Calabrich ao EL PAÍS.

Em maio do ano passado, Temer tinha afirmado à Globonews que manteria a tradição e nomearia o candidato mais votado pela categoria, como foi feito nos dois governos de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010) e nos mandatos de Dilma Rousseff (2011-2016). Mas Temer lançou uma ofensiva direta contra Janot desde que foi divulgado o acordo de delação premiada do empresário Joesley Batista, sócio da JBS, em 17 de maio. Na segunda-feira, o presidente foi acusado de corrupção passiva por Janot. Na denúncia, Temer é acusado de ser o principal destinatário de R$ 500 mil pagos de propina por Joesley ao deputado federal Rodrigo Rocha Loures (PMDB-PR), em troca de favores no Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade). Temer tinha orientado que Joesley falasse com Rocha Loures sobre problemas no Cade. Os ataques contra o atual procurador-geral da República atingiram o ápice nesta terça-feira, quando o presidente chamou a denúncia de “peça de ficção”.

O presidente ainda deve ser denunciado por Janot por pelo menos dois outros crimes. A nomeação de Dodge como nova procuradora-geral da República é considerada por investigadores da Operação Lava Jato uma tentativa de Temer de sufocar essas ações penais no Congresso e outros inquéritos.

Ao menos três fatos pesaram contra a nomeação de Nicolao Dino: 1) ser o candidato mais próximo de Janot; 2) ser irmão do governador do Maranhão e opositor a Temer, o ex-juiz Flávio Dino (PCdoB-MA) e; 3) ter pedido a condenação do presidente no processo contra a chapa Dilma-Temer.

A favor de Dodge, o presidente e seu núcleo político avaliaram que seria um sinal positivo a ele nomear a primeira mulher a ocupar o principal cargo do Ministério Público Federal. Desde que assumiu a presidência após o impeachment de Rousseff, em maio do ano passado, Temer se caracterizou por ter um ministério tipicamente masculino. Apenas durante o decorrer dos meses e diante da repercussão negativa, mulheres começaram a ocupar alguns postos-chaves, como a Advocacia-Geral da União e o ministério dos Direitos Humanos.

Outra razão para nomear Dodge, segundo auxiliares do presidente, foi o fato de ela já ter feito críticas a Janot. Procuradora da República há 30 anos, a escolhida por Temer cobrava celeridade nas investigações da Operação Lava Jato. Desde o início das apurações, em 2014, menos de um terço dos políticos investigados tiveram denúncias apresentadas. Esta foi a segunda vez que Raquel Dodge disputou a eleição da ANPR. Em 2015, ela ficou em terceiro lugar na lista.

Quando lançou sua candidatura à Procuradoria-Geral, Dodge publicou um site voltado aos seus eleitores, cerca de 1.300 procuradores. Seu lema de campanha estampado no site é: “Ninguém acima da lei. Ninguém abaixo da lei”. Em um dos seis vídeos postados, ela explica as razões que a fizeram concorrer ao cargo de procuradora-geral e destacou que, em sua análise, a operação Lava Jato ensinou três lições à população. “A primeira de que ninguém está acima da lei. A segunda, de que resultados podem ser alcançados com a legislação que temos, não é preciso esperar muito tempo. E a terceira, é que esses resultados podem ser alcançados celeremente”.

Antes de ter seu nome oficializado no discurso do porta-voz Alexandre Parola, Dodge foi recebida por Temer e pelo ministro da Justiça, Torquato Jardim, e ouviu deles que seria a escolhida. Antes de substituir Janot, em setembro, a procuradora terá de ser sabatinada e ter sua indicação aprovada pelo Senado Federal, casa em que quase um terço dos parlamentares é investigado judicialmente.

De acordo com as regras da Constituição, o presidente da República não precisa escolher o procurador-geral entre os nomes aprovados pela ANPR, senão apenas nomear algum membro da carreira de procurador com mais de 35 anos de idade. A primeira eleição da ANPR ocorreu em 2001, quando o então presidente Fernando Henrique Cardoso(PSDB) ignorou a lista da associação e indicou o procurador Gerardo Brindeiro, que ficou conhecido como o “engavetador-geral da República” por não dar andamento às investigações que poderiam afetar o presidente.

Fonte: El País