Manaus (AM) – Análises nos poços tubulares do sistema de abastecimento do Serviço Autônomo de Água e Esgoto de Parintins (Saae), realizadas pela Companhia de Saneamento do Amazonas (Cosama) e pela Universidade do Estado do Amazonas (UEA), constataram que a água da cidade é “imprópria para consumo humano”. Ao avaliar as análises em 15 dos 29 poços da rede interligada, a Coordenação-Geral de Vigilância em Saúde Ambiental (CGVAM) do Ministério da Saúde (MS) concluiu, em 20 de maio deste ano, que a cidade não possui tratamento mínimo de água, o que demonstra a gravidade da situação, “uma vez que mais de 90% da população consome água sem tratamento”. O município de Parintins fica localizado na região do Baixo Rio Amazonas, a 369 quilômetros de Manaus.
A Cosama realizou testes em sete poços tubulares do Saae de Parintins, no dia 26 de março de 2019. Conforme o resultado do Laudo de Medição Para Potabilidade, assinado pelos químicos Leôncio Cirino Vieira e Hamilton Novo Lucena, as amostras “apresentaram a presença de coliformes fecais, bem como o parâmetro de alumínio com valores acima do máximo permitido pela norma de potabilidade da água”. “O poço PT-20 também apresentou nitrato acima do valor máximo permitido”, diz o documento, o qual a agência Amazônia Real teve acesso.
O relatório da Cosama foi enviado, em abril, à Comissão de Geodiversidade, Recursos Hídricos, Minas, Gás, Energia e Saneamento, da Assembleia Legislativa do Amazonas (ALE-AM), que é presidida pelo deputado Sinésio Campos (PT). A comissão recebeu uma reclamação e um pedido de providências para assegurar a melhoria da água servida à população, junto ao Conselho Municipal da Cidade de Parintins.
Já o Relatório do Curso de Mestrado Profissional em Gestão e Regulação de Recursos Hídricos da Universidade do Estado do Amazonas foi realizado durante o II Seminário Encontro de Ideias Rios da vida: discutindo a água consumida em Parintins, promovido pelo PROFÁGUA. Nas análises das amostras da água coletadas em oito poços, entre os dias 28 e 29 de abril de 2018, no sistema de abastecimento, foram identificados “os valores de metais como alumínio, chumbo, amônia e nitrato acima dos parâmetros permitidos pela legislação vigente, estando inaptos [à potabilidade]”, conforme diz o relatório da UEA, assinado pelo professor-doutor Carlossandro Carvalho de Albuquerque, coordenador do mestrado, e pelo técnico químico Elton Alves de Souza Filho.
Segundo o relatório da UEA, com base nas análises nos poços do sistema de abastecimento do Serviço Autônomo de Água e Esgoto de Parintins (Saae), “não foi encontrado cloro livre em todas as amostras, o que está em desacordo com a legislação vigente. Estando o sistema suscetível a presença de coliformes fecais (presente em fezes) e a proliferação de microrganismos na rede de abastecimento de Parintins”.
No município de Parintins a captação da água é feita no rio Amazonas. A população é estimada em 113 mil habitantes, conforme o Censo do IBGE de 2010. A cada final do mês de junho, a cidade recebe de 80 a 100 mil turistas para o Festival Folclórico de Parintins. Eles vão assistir à disputa tradicional dos bois-bumbás Caprichoso e Garantido. O acesso da capital do Amazonas à cidade é por viagem de barco, com duração de 18 horas, ou pela via aérea, com duração uma hora de avião.
A água e o cachê de Anitta
Apesar de ser um problema que remonta há 14 anos, segundo relatórios realizados em 2005, a questão da contaminação da água potável em Parintins ganhou nova repercussão este mês ao ser abordada pela promotora de Justiça Lilian Nara Pinheiro de Almeida. Ela anunciou que estava investigando o superfaturamento do cachê de R$ 500 mil pago pela prefeitura municipal, com dinheiro do governo do Amazonas, à cantora carioca Anitta. A artista foi contratada para realizar um show na quinta-feira (28) e abriu a programação do festival dos bumbás. Na plateia, entre os fãs da cantora, estava o prefeito Bi Garcia (PSDB).
Ao jornal Folha de S. Paulo, a promotora Lilian Almeida justificou a investigação, dizendo que, “em média, a cantora Anitta cobra cachê de R$ 200 mil e o dinheiro poderia ter melhor uso”, sendo que “o valor poderia ser utilizado, por exemplo, para resolver o problema de contaminação da água em Parintins”.
Segundo o governo do Amazonas, a parceria com a empresa Coca-Cola Brasil investiu R$ 7,6 milhões no Festival Folclórico de Parintins de 2019, sendo R$ 5,1 milhões de recursos públicos e R$ 2,5 milhões da multinacional de refrigerantes.
Procurada pela reportagem, a Prefeitura de Parintins nega que a água da rede de abastecimento esteja contaminada. Já a Secretaria Municipal de Saúde não informou os valores gastos com investimentos no abastecimento e saneamento básico, e não foi transparente com as estatísticas sobre as doenças de veiculação hídrica, como a diarreia, muito comum em cidades com água imprópria.
Medidas de emergência do MS
Com os resultados dos laudos da Cosama e da UEA, a Comissão de Geodiversidade, Recursos Hídricos, Minas, Gás, Energia e Saneamento, a Assembleia Legislativa do Amazonas pediu, em abril, providências ao Ministério da Saúde (MS). No dia 20 de maio, o ministério, através da Secretaria de Vigilância em Saúde, publicou uma Nota lnformativa com “Recomendações para a Secretaria de Estado de Saúde do Amazonas em relação à qualidade da água para consumo humano no município de Parintins”.
No dia 19 de junho deste ano, a coordenadora-geral de Vigilância em Saúde Ambiental do Ministério da Saúde, Thaís Araújo Cavendish, divulgou Nota Informativa, determinando que a Secretaria de Saúde do Amazonas (Susam) realizasse, em conjunto com a Secretaria Municipal de Saúde (SMS) de Parintins, inspeções sanitárias nos sistemas de saneamento básico e soluções alternativas de abastecimento de água do município.
A Nota Informativa do Ministério da Saúde determinou que a análise dos dados da qualidade da água fosse realizada em parceria com a SMS de Parintins, para avaliar a situação histórica da qualidade da água consumida pela população do município e os dados epidemiológicos de doenças e agravos de transmissão hídrica.
Até o momento, essas novas análises não foram divulgadas pela prefeitura.
Febre e calafrios
A água contaminada pode provocar na população infecção intestinal, por causa das bactérias. Os sintomas da doença surgem entre 2 e 5 dias depois da ingestão, com diarreia intensa, vômitos, febre e calafrios, podendo levar à desidratação. O tratamento médico recomendado é a hidratação oral e, nos casos mais graves, aplicação de soro diretamente na veia. Dependendo do caso, também podem ser necessários internação hospitalar e tratamento com antibióticos, segundo o Ministério da Saúde.
Por causa da contaminação da água, ao menos dez estudantes universitários de faculdades públicas e particulares de Manaus, que participavam do Congresso de Comunicação Intercom Norte, organizado pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM), foram subitamente acometidos pela infecção, em Parintins. Em reportagem ao jornal A Crítica, eles disseram que sentiram náuseas e tiveram vômito, diarreia, além do desconforto abdominal. Os estudantes, que viajaram de barco e de avião, chegaram a cidade entre os dias 21 e 22 de junho, para uma estada até o dia 29.
Duas estudantes tiveram febre e uma foi atendida no hospital público, mas o médico não determinou a realização de exames laboratoriais de sangue, urina e fezes.
“Bebemos água de garrafa, mas a comida era feita com a água local. Escovamos os dentes com água do local. De repente, nos demos conta de que estávamos comendo fora, tomando suco”, relata Izabelly Assad, 21 anos, estudante de Publicidade e Propaganda da Faculdade Martha Falcão, à agência Amazônia Real.
A Fundação de Vigilância em Saúde do Amazonas (FVS-AM) divulgou, neste sábado (29), o resultado de um monitoramento, realizado na quinta-feira (27), nas unidades hospitalares públicas. Segundo o levantamento, foram registrados 81 atendimentos de saúde relacionados ao evento de massa, no caso o show de Anitta. Dos casos clínicos atendidos, os principais sinais e sintomas relatados pelos pacientes foram: febres (24,7%), vômitos (17,3%), dor abdominal (17,3%), diarreia (14,8%) e cefaleia (12,3%).
As equipes da FVS-AM continuam na cidade para monitorar as enfermidades de notificação compulsória, durante os dias de festa. “A equipe está atenta aos cuidados adotados na manipulação de alimentos, visando prevenir surtos de diarreia [durante o festival folclórico], e também no monitoramento, em Parintins, na semana posterior ao festival”, disse o representante da fundação.
Contaminação é recorrente
A qualidade da água de Parintins é questionada em laudos emitidos pelos governos federal e estadual, além de estudos e pesquisas de universidades do Amazonas e de São Paulo, no período de 2005 a 2019. Leia todos os laudos deste período aqui.
Segundo o Relatório do Curso de Mestrado Profissional em Gestão e Regulação de Recursos Hídricos da UEA, de acordo com a legislação vigente, determinada pela Portaria do Ministério da Saúde no 29.141/2011, amostras coletadas nos sete poços de Parintins apresentaram valores preocupantes de amônia e nitrato.
“Tais fatos levantam um alerta, pois estes parâmetros são indicadores de contaminação recente por esgotos domésticos. A presença de nitrogênio nas águas serve de alerta, pois estes compostos acarretam o aparecimento de doenças relacionadas a saúde ambiental, como por exemplo a metamoglobinemia, ocasionando risco principalmente em crianças menores que 2 anos”, de acordo com o relatório.
De 2011 a 2014, a pesquisadora e química Solenise Pinto Rodrigues Kimura, durante o estudo nos âmbitos do mestrado e doutorado pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), identificou a presença de metais pesados como chumbo, cobre e cádmio, e resíduos de esgoto doméstico, em amostras de água coletadas na Lagoa da Francesa, em Parintins.
“A presença desses metais pesados mostra a existência de fontes poluidoras que vêm comprometendo a qualidade da água da lagoa”, de acordo com um trecho da conclusão do trabalho de Kimura.
O Anuário Estatístico do Amazonas, divulgado pelo governo do estado, em 2018, com informações sobre as características geográficas, demográficas, sociais, políticas e econômicas, relata que os casos de diarreia e gastroenterite em Parintins foram 118, em 2014; 87 em 2015; e 143 casos em 2016. A gastroenterite é uma inflamação aguda comum em locais onde não há tratamento de água, rede de esgoto, água encanada e destino adequado do esgoto.
Problema começou em 2005
Em 2005, um laudo elaborado pelo Serviço Geológico do Brasil (sigla CPRM), ligado ao Ministério de Minas e Energia, apontou a presença de metais como ferro, chumbo e outros contaminantes em poços analisados na cidade de Parintins.
O geólogo José Marmos, hoje supervisor de gestão territorial da CPRM, explicou à reportagem que o relatório mostrou, há 14 anos, que, dos 18 poços públicos da época, somente três forneciam águas isentas de contaminação química. Os demais estavam contaminados por nitrato e/ou alumínio. “Não fizemos mais nenhum estudo em Parintins. Sei que, desde aquela época, alguns poços públicos foram paralisados e outros perfurados conforme nossas recomendações e que, atualmente, o sistema público conta com 28 poços em operação”, disse o geólogo.
O médico e professor aposentado da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), Mena Barreto Segadilha disse que foi uma das pessoas que provocou o CPRM a analisar a água consumida em Parintins, em 2005, depois que alunos do internato rural de Medicina notaram que o líquido tinha cheiro de gás metano e fezes.
“Então, quando cheguei em Manaus, pedi que vários órgãos fizessem análises da água. Foram encontrados nitrato, nitrito, ferro, chumbo e alumínio. Colocando cloro nessa água, que tem nitrato e nitrito, você terá um produto chamado trialometano, que causa danos ao aparelho digestório e até câncer de estômago”, explica Segadilha.
O médico acrescenta que o alumínio pode causar problemas neurológicos, renais e hepáticos. Segundo ele, o nitrato e o nitrito provocam diarreia, principalmente em quem não está acostumado a consumir a água com a qualidade em questão.
A cidade de Parintins tem ainda um problema histórico com o lixo.
O que dizem as autoridades?
O Ministério da Saúde, em Nota Informativa expedida em 20 de maio, esclarece que as Secretarias de Saúde dos Municípios e Estados devem “promover e acompanhar a vigilância e o controle da qualidade, desenvolver as ações especificadas, consideradas as peculiaridades regionais e locais e implementar as diretrizes de vigilância da qualidade da água para consumo humano definidas no âmbito nacional”.
O Ministério também informou que, ao constatar os resultados das análises da qualidade da água, realizadas pela Cosama e UEA e as recomendações desses órgãos, sugeriu ações a serem desenvolvidas, em caráter de urgência, por parte da Susam e da SMS de Parintins.
Entre as recomendações estão: realizar inspeções sanitárias nos sistemas e soluções alternativas de abastecimento de água do município; providenciar o devido tratamento da água distribuída para o consumo da população; realizar relatórios das análises dos parâmetros de frequências mensais, trimestrais e semestrais, conforme estabelecido na norma de potabilidade da água; realizar dados epidemiológicos de doenças e agravos de transmissão hídrica; coletar amostras de água, para posterior envio ao Laboratório Central de Saúde Pública (Lacen).
A reportagem da agência Amazônia Real procurou a assessoria de imprensa da Prefeitura de Parintins para saber quais medidas foram tomadas em relação à contaminação da rede de abastecimento há 14 anos, mas até o momento não obteve retorno. Ao jornal A Crítica, o diretor do Saae, Nelson Campos, negou que a água da cidade esteja contaminada e que os casos dos estudantes tenham relação com a água distribuída pela rede do Saae.
Em resposta às perguntas da agência Amazônia Real, a Fundação de Vigilância em Saúde do Amazonas (FVS-AM), ligada à Susam, disse, por meio da assessoria de imprensa, que equipes técnicas do órgão e do Ministério da Saúde encontram-se em Parintins desde o dia 24 de junho. O objetivo das equipes é acompanhar as ações de prevenção contra surtos de doenças e monitorar enfermidades de notificação compulsória, com destaque para sarampo e influenza. O trabalho será realizado durante o Festival Folclórico de Parintins, que iniciou sexta-feira (28) e termina neste domingo, 30 de junho.
A FVS-AM diz que, “até o momento, a equipe que atua em parceria com a Secretaria Municipal de Saúde local não identificou nenhum surto seja, de veiculação hídrica, alimentar ou de doenças transmissíveis”.
De acordo com a coordenadora da FVS-AM, Raquel Tapajós, a equipe está realizando buscas retrospectivas em prontuários nos dois hospitais de saúde, com a finalidade de definir padrão de atendimento pré-evento. Além de atuar dentro dos pontos de atendimentos de saúde, técnicos da FVS seguem realizando a fiscalização em bares, restaurantes, assim como junto a ambulantes e barcos, com a finalidade de evitar o risco de contaminação da população local e dos visitantes.
Por e-mail, o Instituto de Proteção do Amazonas (Ipaam) informou “que está em fase de contratação do laboratório para a realização das contraprovas inerentes à qualidade da água subterrânea de todos os poços tubulares do consórcio de água do município de Parintins”. “Informamos também que, assim que tivermos os resultados adquiridos no estudo, eles serão divulgados”.
Protesto no Dia da Água e a ONU
A situação histórica da água contaminada em Parintins provocou reações da população e protestos. Desde 2005, a Articulação Parintins Cidadã, uma organização que combate a violação de direitos, faz manifestações no 22 de março, no qual é comemorado o Dia da Água.
O grupo de ativistas é formado por moradores do bairro de Djard Vieira, além de crianças da Oficina do Conhecimento Fá-tia Quente.
Segundo Fátima Guedes, da Articulação Parintins Cidadã, quando a água está contaminada com metais pesados e coliformes fecais “não adianta ferver ou colocar hipoclorito de sódio”.
“O Poder Público diz que está cuidando da situação, mas a realidade é outra. Em Parintins, temos um alto índice de pessoas com problemas intestinais e não temos a quem recorrer. Os poderes constituídos, muito bem harmonizados entre si, não atendem aos apelos da comunidade para garantir a qualidade de vida e o bem viver daqueles que pagam impostos que sustentam esse sistema e têm direito”, contesta a ativista.
Segundo as metas propostas para os governos acabarem com a pobreza no mundo, até o ano de 2030, foram propostos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), pela Organização das Nações Unidas – ONU. Assegurar a disponibilidade e gestão sustentável da água e saneamento para todas e todos é o 6º objetivo da ODS. O Brasil faz parte desse acordo. Os governos devem implementar ações nesse sentido, melhorando a qualidade da água, reduzindo a poluição, eliminando despejo de dejetos e minimizando a liberação de produtos químicos e materiais perigosos, reduzindo à metade a proporção de águas residuais não tratadas e aumentando substancialmente a reciclagem e reutilização segura globalmente, entre outras metas. Leia mais no site da ONU.
Fonte: Portal Amazônia Real