Porto Velho (AM) – A violência ronda o Território Indígena Karipuna, no norte de Rondônia. De uma frente de desmatamento, localizada no acesso da aldeia Panorama, ouvem-se tiros e o movimento frenético de caminhões e outros equipamentos pesados. Ameaças de morte a lideranças e de extermínio da aldeia correm à boca pequena na vila de União Bandeirantes, a mais frequentada pelos indígenas.
Uma liminar da Justiça Federal, a pedido do Ministério Público Federal, determinou que fosse elaborado um plano de segurança, em junho de 2018. Três operações de fiscalização já foram feitas, incluindo prisões e queima de equipamentos. Mas nada parece impedir a aproximação dos invasores.
“Mandam dizer que vão entrar e queimar tudo. Que é pouca gente que vive na aldeia e que vai ser fácil”, relata o cacique André Karipuna.
Com 54 falantes da língua Tupi-Guarani, os indígenas vivem uma situação de genocídio iminente, de acordo com o procurador da República em Rondônia, Daniel Lobo, que é o autor da ação civil pública de setembro de 2017 que cobrou medidas de proteção para a terra indígena.
A Terra Indígena Karipuna tem 153 mil hectares está localizada nos municípios de Porto Velho e Nova Mamoré, região onde se localiza o Arco do Desmatamento. Os limites naturais do território são com os rios Jacy-Paraná e seu afluente pela margem esquerda, o rio Formoso (a leste); os igarapés Fortaleza (ao norte), do Juiz e Água Azul (a oeste) e uma linha seca ao sul, ligando este último igarapé às cabeceiras do Formoso. O território foi homologado em 1998.
É nesse arco, que rasga de sul a norte da floresta amazônica e se pode ver nas imagens de satélite, que os invasores atuam, recorrendo a redes de comunicação clandestinas, segundo apontaram as investigações do MPF.
A região é marcada por conflitos fundiários e invasões a unidades de conservação, posteriormente legalizadas. Esse precedente costuma ser invocado por políticos, madeireiros e grileiros que se mobilizam para avançar floresta adentro.
O Conselho Indigenista Missionário (Cimi) anunciou que localizou, há pouco tempo, lotes numerados dentro da unidade, um claro sinal da ocorrência de loteamentos dentro da área dos Karipuna. Um desses terrenos estava delimitado com marcas de tiros de revólver em árvores, relata a coordenadora da entidade em Rondônia, Irmã Laura Vicuña Manso. Ela afirma que há evidências de povos isolados na região. “Eles não têm voz para denunciar e se resguardar dos invasores”, lamenta.
Primeiro a madeira, depois a grilagem
As invasões ao território Karipuna costumam ser iniciadas com a retirada ilegal de madeira. Homens usam caminhões e tratores para abrir a floresta. Depois vem o corte raso das árvores. O objetivo dos invasores é usar a terra indígena para cultivo de pasto e criação de gado. O barulho cada vez mais próximo das motosserras intimida os indígenas, que se sentem ameaçados para continuar nas habituais práticas extrativistas e de pesca.
“Tem área com corte raso. Só falta trazer o gado e a casinha”, diz o cacique André, contando que depois dessa fase entram os grileiros com a venda ilegal da terra. Há também a invasão de garimpeiros e pescadores ilegais.
Em agosto de 2018, o ex-coordenador de Desenvolvimento Ambiental (Codam) de Rondônia, Trindade de Souza, participou da megaoperação de fiscalização na Terra Indígena Karipuna. Na ocasião, ele atuou como agente do Batalhão Ambiental. “Infelizmente, a madeira é o setor que gera empregos e faz circular dinheiro na região”, afirma.
Ele assumiu o cargo na Codam depois que o chefe da pasta foi preso durante a “Operação Pau Oco”, deflagrada pelo Ministério Público e a Polícia Civil estadual para investigar fraudes na liberação de documentos florestais em Rondônia. A operação aconteceu durante a gestão do ex-governador Confúcio Moura (MDB), que agora é senador. Com a entrada do novo governador, Coronel Marcos Rocha (PSL), Souza foi exonerado do Codam.
Trindade de Souza lembra que a ação contou com as presenças de mais de 20 militares do Batalhão de Polícia Ambiental de Rondônia, 100 do Exército e 50 da Polícia Federal (PF). “Se não for assim [com um forte aparato policial], eles [a organização criminosa que comanda os ataques] não deixam nem entrar”, admite.
Segundo ele, os fiscais encontraram centenas de árvores no chão, mas ninguém estava no local. A lógica do desmatamento estava toda desenhada. Foram encontrados de 10 a 15 carreadores [estradas abertas na mata], cada um com cerca de 2 a 15 quilômetros dentro da terra indígena. “Havia muita madeira derrubada e evidências de tentativa de grilagem da terra”, destacou o ex-coordenador da Codam.
Em outra operação, a Kuraritinga, com a participação de mais de 100 agentes da PF e apoio de duas aeronaves, foram destruídos um trator, uma antena de radiodifusão, quatro motocicletas e três acampamentos utilizados pelos invasores, segundo nota à imprensa da Polícia Federal. Também foi feita a apreensão de um trator, uma máquina pá carregadeira, duas espingardas calibres 12 e 22, três motosserras e equipamentos de rádio. Uma grande quantidade de madeira já derrubada e pronta para extração da terra indígena foi encontrada.
Ele informa que foram feitas mais duas operações na área e outra estaria em andamento atualmente.
A Funai não respondeu a uma solicitação da reportagem sobre as operações realizadas na Terra Indígena. Mas a fundação divulgou em seu site uma nota, no mês de janeiro, sobre uma nova ação no território.
Essas operações foram consequência da liminar do juiz federal Shamyl Cipriano que, em junho, determinou que a Fundação Nacional do Índio (Funai), a União e o Estado de Rondônia se unissem para proteger os Karipuna. Mas os criminosos não vêm encontrando dificuldades para atrapalhar ao máximo o trabalho de fiscalização.
“Há um perigo real. A gente não tem garantia nenhuma. O aparato de segurança são os policiais que nos acompanham, mas mesmo assim eles [invasores] enfrentam os policiais. Mesmo com aparato bélico, mesmo estando dentro da lei para responder a algum ataque, mesmo assim eles vão para cima”, diz Souza.
O ex-coordenador da Codam revelou ainda que os invasores jogam pregos nas estradas para furar pneus e cortam árvores para impedir o tráfego nos carreadores.
“Se os agentes chegam antes, podem encontrar imensas toras na saída, uma forma de coagir a força policial. Até hotéis da região são obrigados a fechar as portas, evitando que os fiscais pudessem ficar na cidade. Donos de postos de gasolina recebem ordens para não vender combustível aos profissionais da lei. Um posto da Funai localizado no acesso principal à aldeia Panorama foi queimado em junho, antes mesmo de ser entregue”.
Invasões recorrentes
As primeiras denúncias de invasões da Terra Indígena Karipuna começaram em 2014 e vêm se intensificando nos últimos anos. Analistas de geoprocessamento do Greenpeace detectaram que, entre setembro de 2015 e maio de 2018, pelo menos 7.640 hectares de floresta foram degradados. As imagens de satélite indicam que o corte é recente. Dos 10.463 hectares de florestas degradados e desmatados dentro da unidade desde 1988, mais de 80% ocorreu entre 2015 e 2018.
Já os dados da Funai, que embasam a liminar da Justiça Federal, indicam que a degradação florestal na terra Karipuna passou de cerca de 130 hectares, em 2016, para 534 hectares, em 2017. É a quinta terra indígena mais desmatada no Brasil e a 1ª em Rondônia, com a derrubada de 1.080 hectares, o equivalente a 31% do total registrado no Estado.
O que dizem as autoridades?
Diante das ameaças que não param contra os indígenas Karipuna, o procurador da República Daniel Lobo informou que iria peticionar o Exército e demais órgãos sobre o não cumprimento integral da ordem judicial.
A reportagem procurou o Exército para falar sobre o assunto, mas o órgão se esquivou de responder até a publicação desta reportagem.
A Sedam (Secretaria de Desenvolvimento Ambiental) também não vem cumprindo com a sua parte, conforme determinava a liminar. Ela deveria promover a auditoria nos planos de manejo e concessões em áreas total ou parcialmente inseridas a menos de 10 quilômetros do TI Karipuna.
O procurador Daniel Lobo questiona o fato da atribuição da Sedam, um órgão estadual, legalizar planos de manejo em uma área que pertence à União.
O ex-coordenador do Codam, Trindade de Souza, estima que há cerca de 10 planos de manejo licenciados na área de entorno do Terra Indígena Karipuna no vilarejo de União Bandeirantes, no distrito de Jacy-Paraná, distante a 160 quilômetros de Porto Velho. A Sedam investiga se madeireiras locais estariam comprando irregularmente as árvores e despachando-as para serrarias.
“Pode ser que essas serrarias estejam acobertando a madeira que sai desta unidade”, diz o ex-coordenador, que também “estima” que cerca de 10 serrarias operam em União Bandeirantes.
Procurado pela reportagem da Amazônia Real para falar sobre os planos de manejo, o Departamento de Comunicação do Governo do Estado disse em nota enviada por e-mail que “o atual Coordenador de Desenvolvimento Florestal da Sedam, Huerique Pereira, informa que os Planos de Manejo Florestais estão bloqueados segundo o calendário florestal. A Secretaria está fazendo a análise geoespacial e o cruzamento de informações no Sistema DOF irá verificar se houve exploração irregular. Caso encontrado, a equipe in loco irá proceder as medidas cabíveis”.
Denúncias em âmbito internacional
A situação de iminente genocídio do povo Karipuna foi denunciada por Adriano Karipuna em abril de 2018 durante o Fórum Permanente dos Povos Indígenas, em Nova York. Em outubro, André Karipuna fez um relato dos acontecimentos na sede da ONU, em Genebra, na Suíça. Ele solicitou a criação de mecanismos de punição, civil e criminal, para empresas nacionais e transnacionais que violam direitos humanos dos povos indígenas e de suas terras originárias.
O procurador da República Daniel Lobo disse à Amazônia Real que foram feitas pelo menos cinco prisões em flagrantes e dez pessoas foram detidas nos últimos três a quatro meses, por diversos crimes ligados ao conflito agrário dentro da Terra Indígena Karipuna. Há inquéritos policiais correndo sob sigilo, disse ele.
Para o procurador, dez homens armados dentro da TI já seriam suficientes para frear o ímpeto dos invasores. Mas, segundo ele, há dificuldades e falta de vontade política para que uma medida simples como essa aconteça. “Quando o Estado quer resolver os problemas, eles têm os recursos e resolvem”, diz.
Porém, mesmo quando há atuação, o poder público fica de mãos atadas, porque “a lei penal facilita a vida de quem comete crimes ambientais”, complementa o ex-coordenador do Codam Trindade de Souza. “Às vezes, o cara que foi preso cometendo o crime sai da delegacia pela porta da frente antes do que nós [agentes do estado], porque precisamos fazer um relatório informando sobre as operações”, lamenta.
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