Índios propõem boicote a empresas que negociam com invasores de reservas

A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), associação que representa diversas etnias, divulgou, pela primeira vez, uma relação de empresas estrangeiras que fizeram comércio com agentes do agronegócio brasileiro acusados de atuar em áreas de conflitos de terras indígenas e de extrair recursos de áreas protegidas, além de colecionar multas por danos ambientais.

O relatório lista investimentos feitos no intervalo entre 2017 e 2019 por empresas europeias e americanas. A intenção da Apib é propor um boicote a esses negócios e, posteriormente, apresentar os dados ao Parlamento Europeu, cobrando providências.

“Nós entendemos que somente a sanção a esses produtos, que são produzidos e comprados em área de conflito indígena, é que pode garantir os direitos constituídos aqui no Brasil”, disse Sônia Guajajara, liderança indígena e coordenadora executiva da Apib. “Temos de cobrar desses países estrangeiros que também exijam respeito aos direitos territoriais, ambientais e humanos, e que só comprem com quem se compromete com isso.”

O relatório analisa as principais multas por desmatamento ilegal cometidas por 56 empresas brasileiras, que foram cobradas pelo Ibama de 2017 a 2019. Foram identificadas 27 empresas estrangeiras importadoras de commodities fazendo negócios com madeireiras, frigoríficos e agricultores de soja, além de doações para partidos políticos ligados ao agronegócio.

Entre as pecuaristas citadas no relatório constam a Agropecuária Santa Barbara Xinguara (AgroSB), a Agropecuária Rio da Areia LTDA e os três principais processadores de carne bovina no Brasil: JBS, Marfrig e Minerva. Propriedade de um fundo internacional administrado pelo banqueiro Daniel Dantas, a AgroSB recebeu as maiores multas por desmatamento ilegal da Amazôna em 2017, totalizando US$ 20 milhões. A empresa seria multada novamente em 2018. Ambas as cobranças podem ser consultadas no site do Ibama. Entre 2017 e 2018, uma outra empresa de nome Agropecuária Rio da Areia foi multada cinco vezes pelo mesmo motivo, totalizando US$ 1,2 milhão. Em seu site, a Rio da Areia afirma que “é uma das maiores empresas de criação de gado de corte do país, fornecendo para os principais frigoríficos do Brasil, como JBS, Marfrig, Minerva, entre outros”. A tríade citada responde por mais da metade de todo o gado abatido na Amazônia.

Em nota, a AgroSB disse que “não possui embargo em seu nome no Conjunto Vale Sereno, que se encontra regular e licenciado. O Conjunto Vale Sereno tem uma extensão total de 83 mil hectares, o que significa que, ainda que se considere o entendimento do Ibama, há área de sobra para criação de gado”. Disse ainda que a sistemática operacional da empresa não infringe qualquer disposição legal.

O Frigorifico Xinguara afirmou que não adquiriu gado oriundo de fazendas embargadas e que cumpre regularmente as determinações ambientais relativas à fiscalização de seus fornecedores de gado.

Também em nota, a JBS disse que não comprou animais de áreas embargadas pelo Ibama, que vem cumprindo integralmente o Termo de Ajuste de Conduta assinado com o Ministério Público Federal e que todas as operações de compra de gado da companhia são anualmente auditadas de forma independente.

Um estudo publicado pela revista científica Public Library of Science aponta que, entre 2011 e 2012, 78% e 54% da extração madeireira nos estados do Pará e Mato Grosso, respectivamente, eram ilegais. Entre 2017 e 2018, o empresário Arnaldo Andrade Betzel, dono das madeireiras Benevides Madeiras e Argus, foi multado em US$ 570 mil por desmatamento ilegal no Pará. No mesmo intervalo, a Benevides Madeiras exportou um total de 1.754 toneladas de madeira para empresas da Bélgica, Holanda, Dinamarca, França, do Reino Unido e dos Estados Unidos.

O relatório da Apib também cita a Tradelink Madeiras, subsidiária do Grupo Tradelink com sede no Brasil, que foi multada em 2016 por venda de madeira ilegal. Em 2017, a empresa foi multada 11 vezes por desmatamento irregular, totalizando US$ 260 mil. No mesmo ano, o grupo ainda foi denunciado por usar mão de obra escrava em sua cadeia de fornecimento. Entre 2017 e 2019, a Tradelink exportou 2.203 toneladas de madeira amazônica para importadoras da Dinamarca, do Canadá e dos Estados Unidos. A empresa informou que não se manifestaria sobre a questão.

“Os comerciantes da Europa e da América do Norte podem contribuir cortando laços com esses maus atores brasileiros, dessa forma enviariam um sinal a Jair Bolsonaro de que o resto do mundo não irá tolerar suas políticas”, disse Eloy Terena, assessor jurídico da APIB. “Se essas empresas seguirem apoiando as empresas brasileiras, devem também assumir a culpa pela destruição das florestas tropicais e do abuso contra os povos indígenas”, concluiu.

Segundo dados do Greepeace e do grupo Chain Reaction Research, os principais propulsores do desmatamento na Amazônia são as indústrias da pecuária e da soja. Em abril de 2018, cinco empresas compraram cerca de 3.000 toneladas de soja e outros grãos de fazendas anteriormente embargadas pelo Ibama no Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia. São elas: ABC Indústria e Comércio SA, JJ Samar Agronegócios Eireli, Uniggel Proteção de Plantas Ltda, Cargill e Bunge Ltda. Batizada de “Operação Shoyo”, a ação aplicou R$ 105,7 milhões em multas a empresas e produtores rurais.

Em resposta à operação, a Bunge divulgou uma nota em que dizia que “apresentou sua defesa, na qual estão comprovadas as boas práticas da empresa na aquisição de grãos, baseadas nas diversas consultas às bases de dados públicas relativas a áreas embargadas, o que atesta a regularidade da compra alvo da autuação”. A empresa disse ainda que respeita a legislação e que apoia iniciativas do Ibama, como a Moratória da Soja (que limitou o plantio de soja na Amazônia). Já a Cargill informou que não recebeu nenhuma notificação do Ibama relacionada à irregularidades na compra de soja no Maranhão.

A Algar Agro, dona da ABC Inco, disse que “apresentou defesa onde comprova suas boas práticas na compra de grãos, baseadas nas diversas consultas aos dados do Ibama, o que atesta a regularidade de suas relações comerciais”. Informou, ainda, que “dispõe de controles rígidos e de um sistema de compliance acompanhado sistematicamente para garantir o cumprimento de todo o ordenamento legal vigente, onde se incluem as normas ambientais fiscalizadas pelo Ibama”.

A Uniggel e a JJ Samara Agronegócios Eireli não se posicionaram sobre o assunto até o fechamento desta reportagem.

A publicação do relatório coincide com o 15º Acampamento Terra Livre, que acontece anualmente em Brasília. Cerca de 4.000 indígenas, de mais de 150 etnias e de todos os estados do país estiveram presente. O evento, que acontece há 15 anos, é o maior encontro de povos indígenas do Brasil.

Fonte: Época